quarta-feira, 17 de setembro de 2008

"Chegámos ao Paraíso..."

"A força que entrou em Abrantes no dia 24 de novembro, não excedia a 4 ou 5:000 homens, e em que deploravel estado pode-se facilmente imaginar!...
A vista de Abrantes reanimou-os. E que nada ha effectivamente mais encantador do que este ridente Valle do Tejo, principalmente quando acabam de se atravessar as aridas provincias hespanholas da raia, e os temerosos faguedos da Beira.
Tudo é risonho e sereno, tudo offerece o aspecto da opulencia e da fertilidade. O rio deslisa brandamente por entre ricos vergeis, pittorescas villas, margens verdejantes, e abraça amorosamente as ferteis lezirias.

Os soldados de Junot imaginaram que tinham entrado no Paraizo.
Bebiam regaladamente os optimos vinhos das cepas portuguezas, saltavam nos laranjaes e comiam com delicia a fructa verde, sem se importarem que ainda não estivesse avermelhada a casca..."


Excerto do volume XI de "Historia de Portugal : edição popular e ilustrada", pelo M. Pinheiro Chagas. Lisboa : Escriptorio da Empreza, 1827.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Os custos humanos das Invasões Francesas em Abrantes



Entre 1807 e 1814, Portugal e Espanha foram protagonistas da luta multissecular entre França e Inglaterra. Eram, nesse tempo, as quatro nações com impérios, podendo pois afirmar-se que a Guerra Peninsular, foi um episódio central, da guerra global que opôs o Império de Napoleão ao britânico. Abrantes, pela sua posição estratégica, fez parte do teatro de operações peninsular, sendo considerada de suma importância militar, como chave da província da Estremadura e plataforma logística da maior centralidade.
Não foi fácil chegar a Abrantes, mas a invasão foi uma marcha sem oposição militar. A luta que Junot travou foi apenas contra a intempérie, as condições agrestes do percurso e a falta de reabastecimentos. A 23 de Novembro de 1807 entrou na vila a vanguarda do exército francês. Junot, com a elite da 1.ª Divisão de Infantaria, chegou a 24 e saiu a 26, rumo a Lisboa, deixando aqui uma guarnição de uns 200 homens.
Numa análise global aos sete anos da guerra, o exército anglo-luso terá sustentado 15 batalhas, 215 combates, 14 sítios, 18 assaltos, 6 bloqueios e 12 defesas de praças. O número de vítimas é mais difícil de contabilizar – calcula-se que as tropas portuguesas tenham sofrido 5150 mortos, num total de 21141 baixas. Mas os civis que morreram em lutas, chacinas de represália, em resultado de ferimentos, ou vítimas da fome e de doenças, espalhados pelos montes, terão sido muitos mais.
Não foi a 1.ª Invasão a mais gravosa para os abrantinos. A expulsão dos franceses não causou nenhuma vítima portuguesa na vila e foi gente de fora que empreendeu toda a operação.
Por meados de 1808, aproveitando-se os festejos do Corpo de Deus, generalizou-se a revolta popular, acalentada pelo abandono das tropas espanholas - antes aliadas de Junot - e pela chegada dos primeiros reforços ingleses.
Avisado do desembarque inglês, Junot correu para o litoral e mandou vir o general Loison do Alentejo para Abrantes (8 de Agosto), chegando este aqui no dia seguinte. Julgando Loison que Abrantes estava segura, seguiu para Torres Novas a 11 e depois para Santarém. O encontro francês com a derrota estava marcado, como é sabido, para Roliça e Vimeiro, respectivamente a 17 e 21 de Agosto. Aproveitando essas deslocações das chefias, foi planeada a expulsão dos franceses de Abrantes, ocorrendo a 17 de Agosto (mesma data da Batalha de Roliça).
Correia de Lacerda, capitão de cavalaria, saiu de Castelo Branco a 13, com duas companhias de caçadores paisanos, pernoitando na Sobreira Formosa. A 14 marchou para Vila de Rei, onde ficou até 16. Avançou na tarde desse dia, com uma hoste de 300 chuços e alguns fuzis, indo emboscar-se perto da Abrançalha. Na madrugada do dia 17 aproximou-se da igreja de S. Vicente, onde tomou posições. E enquanto uns escalavam o Castelo, do telhado da igreja atingiam-no outros, pondo os franceses em fuga para o lado do Tejo. Das duas centenas de franceses que compunham a guarnição, terá havido nesse primeiro confronto 52 mortos e 117 feridos ou prisioneiros, ascendendo as baixas finais a 73 e 121, respectivamente.
Expulsos os franceses seguiram-se, em 1809, trabalhos de fortificação da vila. Abrantes passa a ser considerada fulcral no plano estratégico do território e é classificada como praça militar de 1.ª ordem. É então aqui estacionado um poderoso conjunto de corpos militares e criado um dos principais depósitos de munições e víveres.
Entramos em 1810. Os primeiros meses do ano são vividos em clima de guerra, com a chegada de mais tropa a Abrantes - regimentos de Soure e da Lousã, com cerca de 6000 homens - e a adaptação do convento de S. Domingos a hospital militar (já funcionava em Abril).


A 3ª Invasão Francesa – a pior fase da Guerra

Esta invasão da Península foi, sem dúvida, a mais violenta e de consequências mais desastrosas. A invasão decorreu ao longo dos meses de Agosto e Setembro de 1810, tendo os estrategas ingleses adoptado uma política de “terra queimada” que consistia no dever de se abandonarem as casas e os campos, destruir os haveres e as culturas. Massena não devia encontrar um país vivo, mas um deserto sem habitantes nem víveres para o seu exército. Quem não cumprisse a ordem do general Wellington seria considerado traidor.


As vítimas em Abrantes


- A paróquia de S. João esteve ocupada com víveres, pelas tropas portuguesas estacionadas na vila. Faltam os assentos paroquiais desse período, pelo que não é possível conhecer em pormenor a mortalidade. Mas sabe-se que no «Rossio d’Além do Tejo», então adstrito a S. João, funcionava em Outubro de 1810 um hospital militar e um cemitério (militar).
- A igreja paroquial de S. Pedro foi impedida de prestar serviço religioso, servindo de calabouço aos “prisioneiros franceses que saíram de Espanha” em 1808, sabendo-se também que aí se achou morto um soldado espanhol pró-francês.
- Na paróquia de Santa Maria do Castelo apura-se que no período 1811-1815 a igreja «estava embaraçada» (impedida, cheia), pelo que os poucos defuntos aí registados foram transferidos para S. Pedro.
- Quanto a S. Vicente, os registos paroquiais estão completos e podem constituir uma boa amostra: 1808, 100 óbitos; 1809, 144; 1810, 105; 1811, 413 e 1812, 172.

Para analisar as vítimas em meio rural, mais uma vez nos confrontamos com a ausência de documentação, mas existem algumas freguesias que são excepção, verificando-se que os óbitos anuais chegam a aumentar cinco vezes entre 1807 e 1810 e que a partir de 1811 – devido às carências de toda a ordem - ainda crescem para cerca de oito vezes. É o que se passa com freguesias como Aldeia do Mato, Rio de Moinhos, S. Miguel, Souto e Tramagal, sendo certo que as que mais sofreram foram as que ficavam perto dos corredores de passagem.

Ocupada desde Novembro de 1807, Abrantes é uma importante plataforma logística para o exército napoleónico, nas suas movimentações por todo o país, realçando-se a facilidade e rapidez com que se podia efectuar o transporte de “feridos, estropiados e mortos”, na sua maioria franceses, para os hospitais centrais em Lisboa. Uma das fontes sobre o assunto é a "Relação da Expedição", escrita em 1817 pelo Barão Thiébault, chefe do estado-maior do exército de Junot, na 1.ª Invasão. Segundo ele, Abrantes representou muito nos planos franceses, sendo mesmo vista como a «salvação» do exército e «o fim dos seus males», livrando Junot do fracasso prematuro: foi aqui que os soldados comeram as primeiras refeições completas desde Salamanca, se agasalharam, calçaram e puderam cuidar da saúde, num hospital com 300 camas. Também o general Foy, na sua "História da Península sob Napoleão", fala na evacuação de inúmeros feridos para Lisboa, através da importante auto-estrada que é o Tejo, a partir de Abrantes. No “verão quente” de 1808, vindo da sua campanha de terror no norte do país, também Loison faz enviar pelo Tejo cerca de 800 feridos.
Basta uma pesquisa no catálogo do Arquivo Histórico Militar, para nos apercebermos da existência de muita documentação sobre este assunto, referente a Abrantes. São também muitas as referências à existência na vila de um depósito de convalescentes ou de um hospital militar, alternando as duas designações, independentemente das datas. No período que corresponde à segunda e terceira invasões (1809-1814), sendo Abrantes uma vila já administrada pelos portugueses, não é de estranhar a existência de um hospital central de apoio a todas as batalhas que se foram travando no interior do país, verificando-se várias referências à existência de um hospital de Divisão.


quinta-feira, 10 de julho de 2008

O exército francês entra em Abrantes



O general Junot chegou na manhã de 24 de Novembro de 1807 a Abrantes. A sua vanguarda tinha aí entrado na véspera. Ele pensava primeiro assegurar-se da passagem do Zêzere. A tomada de Punhete, pequena "cidade" situada na margem esuqerda deste rio, e na sua confluência com o Tejo, devia ser, sob o ponto de vista militar, o complemento da ocupação de Abrantes.
Abrantes é uma cidade considerável. Está erguida sobre o reverso meridional duma eminência no sopé da qual corre o Tejo. Chega-se aí por caminhos estreitos e difíceis; parte de uma elevação tem velhas muralhas e um castelo arruinado. Existe uma parte de barcas situada um quarto de légua abaixo das muralhas da "cidade". è a última direcção de Lisboa. Dentro em pouco o Tejo, engrossado pelo Zêzere, deixa de rolar em turbilhão e desce ao mar magestoso, imenso e banhando os campos férteis situados à saída do deserto e à entrada do Alentejo de uma lado, e da Estremadura do outro. A praça de Abrantes pode exercer a mais alta influência sobre as operações de guerra. Não lhe falta senão estar melhor fortificada para ser chamada de chave de Portugal.

Fragmentos de "História da Guerra da Península sob Napoleão", pelo general Foy. Paris: Baudouin, 1827.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

No rasto das Invasões Francesas



QUARTEL-GENERAL EM ABRANTES...

Comunicação apresentada pelo professor Joaquim Candeias da Silva, no colóquio organizado pela Biblioteca Municipal António Botto, no dia 23 de Novembro de 2007, para assinalar os 200 anos da entrada em Abrantes, das tropas francesas, chefiadas por Junot.




Guerra Peninsular

Toda a gente em Abrantes ouviu já falar das Invasões de há duzentos anos, e pelo país de lés a lés ninguém ignorará a famigerada e geralmente deturpada chalaça do "Tudo como dantes, Quartel-General em Abrantes", que pouco depois se terá estabelecido. À lembrança de uns ocorrerão vagas memórias de destruição e morte, ou a história dos 10 ou 12 mil pares de sapatos que os abrantinos tiveram de aprontar de 24 para 26 de Novembro de 1807... Outros evocarão nomes como o do general Junot (que Napoleão fez Duque de Abrantes!) ou de Loison (o famigerado Maneta). Outros ainda lembrarão melhor episódios como as intervenções dos "afrancesados" Dr. Rodrigo de Bivar e seu filho Diogo, a tomada do Castelo pelo capitão Correia de Lacerda na jornada libertadora de 17 de Agosto (de 1808), o relançamento das pontes de barcas do Tejo (com os chamados Mourões), e tantos outros que foram entrando na tradição e na lenda...
Contudo, a verdadeira história das invasões napoleónicas ou da Guerra Peninsular nesta região, muito mais complexa, essa está por fazer. E daí o incentivo, quase desafio, por nós oportunamente lançado e por diversos meios, para a condigna comemoração e o aproveitamento da efeméride. Porque tendo Abrantes e a sua área de influência, pela sua posição estratégica, também feito parte do «Teatro de Operações Peninsular» entre 1807 e 1814, importava que o evento, de tão grande repercussão em Portugal e Espanha, mas também em Inglaterra, França e outros países, constituísse para nós também uma ocasião soberana para uma reflexão aprofundada: primeiro sobre esses mesmos tempos passados que moldaram o nosso presente, depois sobre as relações mais vastas desta região com outras áreas peninsulares e europeias ainda numa perspectiva de actualidade, fazendo da história ponte de uma Europa dividida para a actual União Europeia.
De algumas vertentes do conhecimento, por falhas ou desaparecimento das imprescindíveis fontes documentais, jamais conseguiremos informação completa – sirvam de exemplo os comportamentos demográficos de algumas freguesias (caso de S. João, com a perda do insubstituível livro de óbitos de 1802-1820, entre outros), ou as peripécias do poder municipal, devido a igual perda de livros de actas e de contas (de 1808 a 1810) ou à propositada inutilização de muitas folhas dos sobrantes; de outros aspectos históricos, arqueológicos, sociológicos, demográficos, da riquíssima tradição oral (ainda viva e em grande parte por registar nas aldeias), faltam pesquisas de conjunto e estudos aturados. No entanto, porfiando sempre, haverá decerto algumas matérias em que poderemos trazer novas achegas, a nova luz, quiçá algumas surpresas...
Das breves incursões que fizemos, mormente no Arquivo Histórico Militar e na Torre do Tombo, obtivemos alguns resultados, que embora preliminares não deixam de ser já indiciadores do que acabámos de afirmar; mas a quantidade de documentos que existe para este período, nesses e noutros arquivos, é vastíssima...


Napoleão Bonaparte – Um vencido?


O prelúdio da Guerra

Já em 1704, por ocasião da Guerra da Sucessão de Espanha, D. Pedro II, desejando consolidar as posições desta vila por a considerar «de suma importância militar como chave da província da Estremadura», incumbira dessa tarefa o Conde de Soure, a quem também nomeou governador dela. Mas a mais importante reforma foi, sem dúvida, pelos anos de 1762-64, a acção reorganizativa do Conde de Lippe, general que procurou moldar o exército português à imagem dos melhores exércitos europeus da época e em especial o do grande Frederico II, seu amo. Com efeito, em consequência do “Pacto de Família”, que o rei D. José se negou a assinar, o território português é nesses anos invadido pelas tropas aliadas de Espanha e França, num episódio que ficou conhecido por “Guerra Fantástica” (no âmbito da Guerra dos Sete Anos). Então o Marquês de Pombal contrata o dito Conde para vir reorganizar o Exército e dirigir as operações militares.
Ora, é em Abrantes que o conde de Schaumberg-Lippe estabelece o seu Quartel-general, ficando do anglo-alemão fama de uma disciplina férrea, contrariamente à desordem quase tradicional. O ataque aliado vem pela Beira [Almeida – Sabugal – Penamacor (15 a 17 Setembro) – Castelo Branco (21 a 30) – Ródão (2 Outubro) – Sarzedas (dia 4) – Sobreira Formosa (4 a 16)]; enquanto a fronteira do Alentejo era violada pelos espanhóis, também em direcção a Abrantes. Mas, mercê de problemas vários (doenças e deserções entre os inimigos), conjugados decerto com a boa defesa de Lippe, o certo é que a força invasora evitou Abrantes, rumando a Castelo de Vide e Marvão (Novembro), por Mação. A retirada coincidia com a negociação do (1.º) Tratado de Fontainebleau (3.11.1762); mas, a experiência serviria para ambas as partes em contenda como ensaio às guerras seguintes.
Ainda assim, apesar do bom teste à capacidade defensiva de Abrantes, não faltou o rol dos mortos. Os assentos paroquiais desse ano de 1762, sobretudo os da freguesia de S. Vicente, assinalam então a morte e o enterramento em Abrantes de elevado número de militares (soldados). Também aparecem alguns que morrem presos na cadeia da vila (Nicolau Vitron, francês, e Filipe Pacheco de Aragão Cabral, da Covilhã, ambos a 25 de Outubro). Em Novembro / Dezembro, morrem: a mulher do monteiro-mor do reino, o capitão Vasco Manuel da Silva e Sousa (do Regimento de Setúbal), o Dr. Bernardo de Almeida (cirurgião-mor do Regimento do Conde de Aveiras e, já no ano seguinte, o capelão do Regimento do conde do Prado e o capitão-mor de Abrantes, Rodrigo de Castro. O resultado global, contudo, tinha sido positivo.
Chegamos a 1799. Forma-se então e instala-se aqui, no castelo, a Legião de Alorna, comandada pelo marechal de campo D. Pedro de Almeida Portugal, Marquês de
Alorna, o qual tinha como ajudante o General Gomes Freire de Andrade, com um contingente de cerca de 1300 homens.


O Marquês de Alorna (1754-1813), descendente dos Almeidas abrantinos, com a marquesa e os filhos (1805).


A sua saída, em Setembro de 1800, é de imediato compensada por uma força de Artilharia e dois regimentos de Infantaria. Seguir-se-ia, em 1801, a chamada Guerra das Laranjas – a que o historiador António Pedro Vicente já chamou a 1.ª Invasão Francesa (!) – com fortes repercussões nesta região. Essa foi declarada a Portugal a 2 de Março de 1801, na sequência do acordo de Napoleão com o rei de Espanha (29 de Janeiro). Olivença e Juromenha renderam-se... e a paz foi assinada a 6 de Junho, em Badajoz, se bem que em condições vexatórias para Portugal, datando daí a perda definitiva de Olivença.
Entretanto, haviam chegado a Abrantes diversos esquadrões e regimentos (de Freire, de Lippe, de Infantaria da Corte), e sobretudo o exército comandado pelo duque de Lafões (velho de 80 anos), que entra a 5 de Junho em completa desordem. Dois meses depois passava ao comando do conde de Goltz – ao que parece já com o cargo de Governador militar de Abrantes... A vila e os seus arredores tornavam-se, assim e cada vez mais, um ponto estratégico para a defesa do reino. Era de novo um verdadeiro Quartel-General, muito embora este pudesse deslocar-se conforme as circunstâncias... Veja-se o mapa seguinte, que representa a vila e arredores em 1801, com o acampamento das tropas portuguesas e inglesas [notar o reduto do Cabeço do Caneiro com tropas e com ligação através do Tejo por ponte de barcas, e mais tropas nas Barreiras do Tejo, no Rossio e na Chainça].


Mapa militar (1801)

Estávamos como que no prelúdio da 1.ª Invasão.

Guerra Peninsular – A 1.ª Invasão

Não vamos aqui espraiar-nos em alargada análise prosopográfica, mas tão só aduzir algumas linhas gerais. As causas da guerra, por via do agravamento das relações diplomáticas luso-francesas desde 1801, são bem conhecidas e os contornos desta primeira incursão também, havendo múltiplos e acessíveis autores a que podemos recorrer para o efeito, desde o clássico José Acúrcio das Neves, na sua volumosa História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, até obras mais especializadas e recentes que vão citadas na Bibliografia (que está longe de ser exaustiva), como por exemplo o n.º especial da revista Açafa, de 2002, exclusivamente dedicado às Invasões Peninsulares pela Beira Baixa.
A declaração de guerra fora dada a 17 de Julho de 1807 e foi depois confirmada pelo (2.º) Tratado de Fontainebleau (27.10.1807), assinado por França e Espanha e referendado por Napoleão. Sob o comando do general Junot, um exército francês de ocupação avança a partir de Bayonne (na Gironda), atravessa Espanha e entra em Portugal a 19 de Novembro por Salvaterra do Extremo e Segura, levando como destino prioritário a capital do reino. [Sabe-se hoje que o percurso inicialmente traçado era outro (pela Beira Alta), devendo-se a opção pela margem direita do Tejo a uma ordem expressa de Napoleão, para mais rapidamente atingir Lisboa. Então Junot, de Alcântara, escreveu ao seu amo: «O caminho que vamos percorrer até Abrantes é extremamente mau e as vias quase impraticáveis (...) teremos grandes dificuldades para viver, mas será essa uma razão a mais para nos apressarmos a chegar a uma terra melhor (...)». Ora, perguntamo-nos, antes de mais: – Quem era esse tal Junot, a quem o Imperador dos Franceses confiou tão arriscada missão, e a quem pouco depois (a 6.4.1808) concedeu o pomposo, honroso e tão propalado título de “Duque de Abrantes”?
Homem ainda novo, antigo secretário e ajudante-de-campo de Napoleão, que fizera as campanhas de Itália e do Egipto e em 1805 fora já embaixador em Lisboa, distinguiu-se depois noutras missões (incluindo a de Governador Militar de Paris). Em 1807 foi ele o escolhido para submeter Portugal, o que inicialmente conseguiu. Vencido em 1808, voltaria em 1810 integrado no exército de Massena (3.ª invasão – comando do 8.º Corpo), não conseguindo melhores louros. Seria ferido gravemente em Rio Maior, por uma bala de fuzil, mas recuperou, regressou a França e ainda participou, em 1812, como comandante do 2.º Corpo do Grande Exército que invadiu a Rússia. No ano seguinte, porém, apoquentado por graves perturbações nervosas e psíquicas, viria a falecer na terra de seus pais (Côte-d’Or), de um “acidente” (por se ter atirado de uma janela, segundo constou). Todavia, tanto o general como sua mulher Laura (1784-1838), ou mesmo o filho de ambos – Napoleon Andoche Junot (1807-1851) –, haveriam de manter o título de Duques de Abrantes até final de suas vidas.


Junot

General Jean Andoche Junot (1771-1813), comandante da 1.ª Invasão e a quem Napoleão fez «Duque de Abrantes».


A «Duquesa», Laura Permon, com quem Junot casou em 1800. Foi com o nome de Duchesse d’Abrantes que ela escreveu Mémoires (1831-1834).

Divergem os cálculos quanto aos efectivos em marcha. Segundo alguns entendidos em história militar, o corpo de exército de Junot era composto de uns 25 a 28 mil homens; mas a essa força expedicionária coligar-se-iam depois as divisões espanholas dos generais Carraffa (com destino a Tomar) e Taranco (para o Norte) com 10 000 homens cada, e ainda 6 000 homens da divisão do general Solano (para o Alentejo). Somariam, portanto, mais de 50 000 homens. Todavia, estas tropas não vieram todas juntas nem bem equipadas, sobretudo em víveres e calçado. Por outro lado, embora trouxessem mapas e relatórios prévios de quase todos os sítios por onde passavam, a realidade mostrou-se bem pior do que o esperado, com caminhos impróprios para a passagem de equipamento pesado. Para além do mais, o tempo inverniço também não ajudou, mormente na travessia de Espanha, com chuva contínua e neve, pelo que terão demorado um mês a atingir Castelo Branco.
E se até aí a deslocação não foi fácil, as dificuldades continuaram, dada a estreiteza das vias (que os franceses comparavam a caminhos de cabras) e a necessidade de abrir uma frente bastante ampla, só seguindo em ordem de coluna nas zonas onde o terreno não permitia alternativa, caso das duas passagens da Serra das Talhadas na zona de Ródão. Daí até Abrantes o percurso contemplou dois trajectos: um pela Portela de Montegordo, Sobreira Formosa, Cortiçada (Proença-a-Nova), Cardigos, Vila de Rei e São Domingos (Souto/Sardoal) – foi por esse que veio Junot e o seu quartel-general; outro por Portela de Milheiriça (perto de Perdigão), Venda Nova, Mação, Penhascoso e Mouriscas – por este vinha Loison e a vanguarda.
Não foi fácil chegar a Abrantes, é certo; mas também não foi difícil, se atendermos a que a invasão foi uma marcha praticamente sem oposição, foi uma guerra sem inimigos; e, sendo embora a Beira atravessada uma região de charneca, bastante pobre, ainda deu para ir obtendo os víveres pelo caminho gratuitamente (ou quase), porque a “paga” era fácil de dar... A luta que Junot travou foi apenas contra a intempérie e as condições agrestes do percurso, e afinal também contra si próprio, dadas as deficiências de planeamento estratégico. Conforme mais tarde alguns seus generais confessaram nas respectivas memórias, bastariam mil homens portugueses colocados em certos pontos de passagem para destruir todo aquele aparato militar...
Enfim, foi a 23 de Novembro de 1807 [há exactamente 200 anos] que entrou na vila a vanguarda do exército francês de ocupação. Junot, com a elite da 1.ª Divisão de Infantaria, chegou a 24 e saiu apressado a 26, rumo a Lisboa... deixando aqui uma guarnição francesa de uns 200 homens, para controlar as operações. O próprio Junot expediu daqui dois mensageiros, um escrivão da vila chamado Joaquim Raposo e depois dele o tenente-coronel Lecor, ajudante de ordens do Marquês de Alorna, a fazer anunciar ao Governo a sua chegada próxima. Só então, na capital, ao saber-se da presença francesa em Abrantes, começou a ser preparada a retirada da família real para o Brasil e foi nomeado um Conselho de Regência, que por acaso até integrava o Marquês de Abrantes, D. Pedro de Lencastre Sá e Meneses (1763-1828), como presidente. O grosso dos efectivos, bastante desfalcado, iria chegando a Abrantes aos poucos: nos dias 25 e 26 chega a 2.ª divisão, a 3.ª em 28 e 29, a cavalaria só entre 29 e 2 de Dezembro, enquanto a artilharia demorou 12 dias (a 8).

Dizer isto assim, na secura de datas, nomes e números, poderá ser enfadonho e saber a pouco... Todos imaginarão peripécias e alegarão ditos tradicionais do que então sucedeu na “fresca” Abrantes e seus contornos, e quererão justificadamente saber mais. Como é que, afinal, tudo se passou? Onde se instalou tanta tropa? Como reagiram os abrantinos? Pactuaram, afrancesando-se? Fugiram? Ripostaram? Houve vítimas? Se sim, quantas e de que lado? Aplicaram os franceses uma política desumana, de extorsão e saque desenfreado? O que narram, afinal, as crónicas oficiais ou particulares? E as fontes locais, do município e das paróquias?
Não sabemos muito de fonte oficial e local, porque o livro das Actas da Câmara Municipal de Abrantes (= CMA), n.º 131, respeitante àquele período foi deliberadamente danificado com espessos borrões e com arranque de folhas, entre 23 de Novembro e 30 de Dezembro (decerto não por acaso), impossibilitando desse modo a sua leitura [Diz um apontamento no final que as folhas em falta «foram queimadas na fogueira das ordens(?) de S. M.»]. Mas apura-se que as autoridades locais, cumprindo aliás decisões régias, deliberaram então receber os “visitantes” com toda a «comodidade e civilidade» e fizeram «providenciar o bom arranjo da tropa e víveres para ela», havendo mesmo uma comissão para o efeito (liderada pelo bacharel João Vaz Soares) e um «fiel depositário» dos seus víveres (o capitão José Henriques de Carvalho e seu filho).
Recorrendo à historiografia, aí sim, encontramos bastantes e diversificadas alusões, que vale a pena seguir. Uma das mais requestadas fontes é, sem dúvida, a Relação da Expedição escrita em 1817 pelo Barão Thiébault (1768-1846), que foi precisamente o chefe do Estado-Maior do Exército de Junot na 1.ª Invasão. Por esse valioso testemunho, ficamos a saber que Abrantes representou muito nos planos franceses, sendo inclusivamente vista como a «salvação» do Exército e «o fim dos seus males», livrando Junot do fracasso prematuro: foi aqui que os soldados comeram as 1.ªs refeições completas desde Salamanca, se agasalharam e calçaram [a velha historieta dos sapatos, como aqui se prova, tem mesmo fundamento...], e puderam cuidar da saúde num hospital com 300 camas, ou das espingardas que vinham quase inoperacionais. Conta-nos ele no Capítulo V da obra, sob o título «Séjour de l’armée à Abrantès» (pp. 53 a 70):

«Abrantès est une ville riche, peuplée, située sur la rive droite du Tage, au-dessus du confluent du Zezere, et offrant par elle-même, autant que par ses alentours, des ressources qui sauvèrent l’armée. En arrivant à Abrantès, le général en chef [Junot] adressa aux troupes une proclamation, dans laquelle il leur annonça, avec la fin de leurs maux, la récompense de leur constance (...) Les subsistances furent le premier object dont il s’occupa. La ville fournit à cet égard tout ce qu’elle put : le reste, demandé aux villes et aux villages voisins, fut promptement obtenu. On se trouva donc en mesure de faire des distributions complètes, pour la première fois depuis Salamanque, c’est-à-dire, depuis le 12 Novembre; de donner le pain pour un jour d’avance, d’envoyer des vivres, de l’eau-de-vie au-devant des colonnes attendues, et de les faire porter sur des voitures qui ramenèrent les hommes malades ou éclopés, au point de ne pouvoir plus marcher.
Le second object fut la chaussure : toute l’armée, les officiers compris, était pieds nus – [em nota de rodapé:] Un grand nombre de soldats ne marchaient plus que les pieds enveloppés de loques, et de morceaux de peaux des chèvres qu’ils avaient mangées] – Le chef de l’Etat Major [o autor] frappa sur la ville d’Abrantès et sur la province une réquisition de 10 000 paires de souliers neufs, en même temps qu’il envoya, de maisons en maisons, prendre tout ce qui existait de souliers et de bottes; près de 4000 paires furent ainsi rassemblées dans la journée, réparties entre les corps, et distribuées aux hommes qui en avaient le besoin le plus urgent; les 10 000 paires se confectionnèrent rapidement, et furent réservées pour les troupes attendues: cette mesure répétée dans toutes les communes que l’armée traversa depuis Abrantès, la fit arriver à Lisbonne (...).
Aucun fusil ne pouvait servir en arrivant à Abrantès ; (...) en considérant que, depuis plusiers jours, les soldats ne marchaient plus et ne passaient plus les torrens qu’en s’appuyant sur leurs fusils: le repos que les troupes purent avoir dans cette ville fut donc consacré à remettre les armes en état.»

Outra fonte é José Acúrcio das Neves, pela sua conhecida mas ainda imprescindível (embora nem sempre isenta nem rigorosa) História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal. Sigamo-lo, no tomo I, cap. XVI:

«A 23, pelas 3 horas da tarde, chegou a Abrantes a vanguarda, e a 24 pela manhã entrou Junot com a parte do seu exército que o acompanhava: os próprios generais vinham conduzindo rebanhos de gado, que vendiam, para se utilizarem do seu preço, como se viessem de um saque. Junot expediu imediatamente a vanguarda para Punhete [Constância], junto ao Zêzere, e ficou cuidando em aprovisionar o exército; porque pensou achar nesta vila grandes comodidades. Ordenou imediatamente ao juiz de fora José Macedo Ferreira Pinto que lhe fizesse aprontar 12 mil rações e 12 mil pares de sapatos, com a cominação de impor uma contribuição à terra de 300 mil cruzados novos, e o tratou tão asperamente que este digno magistrado logo na noite seguinte evitou com a fuga os resultados que podiam seguir-se. Ficando vago por este motivo aquele emprego, Junot, depois que tomou o governo do reino, o conferiu a um moço [Diogo Soares de Bivar], filho da mesma terra, que se não tinha habilitado nem frequentado as aulas da Universidade, querendo por esta forma mostrar-se agradecido a seu pai, Rodrigo Soares de Bivar, em cuja casa se aquartelara, pelas grandes despesas que fez na sua hospedagem. Até para o vestir lhe deu camisas!
Intimada a vila de Abrantes com o justo receio de uma execução militar, despachou correios para Tomar, e outras terras vizinhas, para se comprarem todos os sapatos que se achassem feitos, e se empregarem todos os sapateiros em fazer os que lhes fosse possível. Trabalhou-se o resto desse dia e toda a noite, os particulares concorreram com os que tinham para o seu uso, e pela tarde do dia seguinte se teria aprontado a terça ou a quarta parte dos que se pediram; com o que se acomodou com efeito Junot, convencido da impossibilidade de se aprontar em tão curto prazo a totalidade. Quanto às rações, proveu-se o exército segundo permitiram as circunstâncias da terra, e não conforme os desejos do general.»


A casa que foi do Dr. Rodrigo Soares de Bivar (médico e figura das principais da vila), onde se instalou Junot e depois outros chefes da Guerra Peninsular, como o duque de Wellington.


Página do Livro de Actas da CMA (fl. 66 v.), com borrões para disfarçar, mas em que se reconhece a assinatura de Diogo Soares da Silva e Bivar, adepto da política francesa.


Parecerá este um discurso um tanto anedótico e pouco simpático para com Junot e as suas tropas, dado afinal por um escritor-jurista, ideologicamente bastante retrógrado... Contudo, mesmo sabendo que havia então em Portugal bastantes simpatizantes da Revolução e que tomaram de início Junot como um libertador, temos de compreender o autor citado: porque, com mais ou menos sapatos e rações (aqui inflacionadas), mais ou menos provocações, ele espelha bem a mentalidade e o imaginário dominante naqueles tempos difíceis, e que era naturalmente antimilitarista e anti-francês. É óbvio que nenhum nacional gosta de se sentir mandado por estrangeiros na sua própria terra e muito menos espoliado ou vexado, como aconteceu de facto em diversas situações. Mas, Acúrcio das Neves continua:

«Em Abrantes não deixaram estes novos vândalos de renovar algumas das costumadas cenas da sua irreligião. Fizeram quartel da igreja de S.to António e dos altares manjedouras para as bestas. Um coronel que se aquartelou no convento dos Capuchos [S.to António] fez todo o género de insolências ao guardião, servindo-se dele até para lhe descalçar as botas, e por fim intimou-lhe que lhe trouxesse todo o dinheiro do convento. A colheita foi pequena, como devia esperar-se de um convento de Capuchos; mas o coronel, que não atendia a razões, lhe intimou que lhe fosse buscar mais dinheiro, ou o faria fuzilar: o bom frade não teve então outro recurso senão fugir, deixando o convento entregue à rapacidade francesa. Foi nesta vila que Junot obteve notícias mais circunstanciadas de Lisboa, ainda que não eram verdadeiras em tudo (...). Perguntou se haveria um homem que quisesse ir rapidamente a Lisboa fazer um grande serviço ao Príncipe Regente: inculcaram-lhe Joaquim Manuel Raposo [escrivão dos órfãos], e foi este o portador de uma carta de Junot a Araújo [António de, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra], a que deu o título de confidencial, que porém imaginava, e se não enganou, que seria vista por S.A.R.. As particularidades desta carta são ainda encobertas; mas sabe-se que ela não serviu senão de mais um aviso à corte da aproximação do exército francês, e de um novo incentivo para apressar o embarque. A vanguarda parou em Punhete; porque o Zêzere, rio caudaloso e grande, lhe negava passagem: para a dirigir e acelerar saiu Junot de Abrantes no dia 26. Durante a campanha de 1801 tinha-se construído ali uma ponte de barcas, e estas se achavam dispersas em diferentes sítios: aquele general as fez juntar, e depois de algumas tentativas, que tornava inúteis a força da corrente, pela muita chuva que tinha caído nos dias precedentes, conseguiu enfim restabelecer a ponte, tendo já feito passar algumas tropas em batéis. Afogaram-se algumas pessoas das que trabalhavam na construção desta obra; mas é sem fundamento o que se tem publicado da grande perda de gente que tivera Junot na passagem do Zêzere.»

Nos meses seguintes uma parte da população ter-se-á adaptado aos novos mandantes (em circunstâncias destas há sempre quem por ideologia ou subserviência tome o partido do poder, na esperança de obter benefícios). [1]
Citemos o caso da Academia Tubuciana e do seu membro mais entusiasta, o afrancesado Diogo Soares de Bivar, que Junot nomeou novo juiz de fora, e que mesmo numa fase já de insatisfação geral prestava à regência esta informação: «Tout est tranquille à Abrantes. Rien n’annonce le moindre mouvement, ni même d’inquiétude. Les habitants s’apprêtent à loger un corps d’Infanterie française que l’on y attend» (carta de 28.6.1808). ; outra parte aceitou a realidade mas reagiu com alguma relutância [foi o caso da CMA, que cedo manifestou aos governadores do reino, logo a 26 de Dezembro de 1807, as suas preocupações numa queixa-consulta acerca da opressão da vila pelas tropas francesas (vide Doc. 1 em anexo)]. Porém, quando estas passaram a exigir demasiado, veio a revolta e a deserção... Imaginemos, por exemplo, o sentir dos fiéis cristãos ao saber, por exemplo, que um decreto de Junot mandava recolher ao Tesouro todos os objectos sagrados das igrejas e conventos, e especialmente dos conventos da Esperança e da Graça; ou a contida ira do cidadão comum quando era sabedor de violências como as que alegadamente foram aqui cometidas pelo General Loison (o Maneta)...



Gen. Loison, o famigerado Maneta (1771-1816), comandante da 2.ª Divisão de Infantaria que arribou a Abrantes a 24.11.1807.

Que mais se pode saber? Continuam a faltar os livros de Actas da CMA para os anos de 1808 a 1810. O livro de 1807, como vimos, foi propositadamente mutilado na sua parte final, encontrando-se umas vezes mutilado por arrancamento de folhas (79 a 96) e outras manchado com grossas pinceladas de tinta negra, de alto a baixo, para impossibilitar a leitura. Devia conter matéria importante e comprometedora para a vereação da altura, para ter sido assim riscado... Dá para entender, no entanto, que passou a assinar Diogo Soares da Silva e Bivar [o tal colaboracionista e afrancesado, filho do Dr. Rodrigo Bivar], em vez do juiz de fora [José de Macedo Ferreira Pinto], e que saiu pelo menos um vereador [Carlos da Veiga Sarafana]. Na última página consegue-se ainda ler: «As folhas que faltam neste livro foram queimadas na fogueira (?) das ... de Sua Majestade».
Porém, por meados de 1808, aproveitando-se os festejos do Corpo de Deus e a generalizada revolta popular, também acalentada pelo abandono das tropas espanholas antes aliadas de Junot e pela chegada dos primeiros reforços ingleses (com Wellesley-Wellington), o general Duque de Abrantes foi obrigado a arrepiar caminho. Ao ser avisado do desembarque inglês, Junot correu para o litoral e mandou vir o general Loison do Alentejo para Abrantes (8 de Agosto), chegando este aqui no dia seguinte. Todavia, julgando Loison que Abrantes estava segura, seguiu para Torres Novas (a 11) e depois para Santarém. O encontro francês com a derrota estava marcado, como é sabido, para Roliça e Vimeiro (perto de Torres Vedras), respectivamente a 17 e 21 de Agosto desse ano de 1808. E foi precisamente aproveitando essas deslocações das chefias que foi planeada a expulsão dos franceses do castelo de Abrantes, a qual ocorreu precisamente a 17 de Agosto (mesma data da Batalha de Roliça). [2]
As circunstâncias da restauração de Abrantes são bastante bem conhecidas, pois vêm relatadas em várias publicações [Cf. J. Acúrcio das Neves, op. cit., II, cap. V; Manuel Morato, Memória Histórica da Notável vila de Abrantes, 2.ª edição, pp. 221-225; e sobretudo na Relação da tomada de Abrantes no dia 17 de Agosto de 1808, por Manuel de Castro Correia de Lacerda (que comandou a operação), Impressão Régia, Lisboa, 1808]. Em resumo, Correia de Lacerda, capitão de cavalaria em Coimbra, saiu de Castelo Branco (dia 13) com duas companhias de caçadores paisanos de Monsanto e Salvaterra, mais o P.e Nicolau de Beja, indo pernoitar à Sobreira Formosa. A 14 marcharam para Vila de Rei, onde ficaram até 16 a estudar a situação. Largaram na tarde desse dia, com uma hoste de 300 chuços e alguns fuzis, indo emboscar-se perto da Abrançalha. Na madrugada do dia 17 (pelas 06 h.), enquanto o P.e Beja ficou de guarda à estrada de Rio de Moinhos, subiu o capitão a Santo António (onde atacou a guarda francesa) e aproximou-se da igreja de S. Vicente, onde tomou posições. E enquanto uns escalavam o Castelo, do telhado da igreja atingiam-no outros, pondo os aturdidos franceses em fuga para o lado do Tejo.
Em resultado do golpe, das duas centenas de soldados franceses que compunham a guarnição, terão morrido nesse primeiro confronto 52 e ficado feridos ou prisioneiros 117, ascendendo as baixas no final a 73 e 121, respectivamente. Entre o número dos mortos figuraria o corregedor-mor francês, descrito como «homem tímido mas de muita probidade, bem intencionado e a quem os habitantes da vila deviam grandes benefícios» (Morato). Teve sepultura católica honrosa, em S. Vicente, enquanto dos restantes franceses não se lhes conhece rasto (Ver adiante «Vítimas – S. Vicente»). Foram-lhes apreendidos 6 fardos de roupas, 1016 sacas de algodão, 196 couros de bovino, armas, cavalos, um costal de chá e café, a botica, toda a secretaria e correspondência do corregedor, e ainda dois barcos de trigo no Tejo. Narra a «Relação» que até à noite daquele dia não cessaram de entrar na vila homens armados, somando no final quatro a cinco mil, «não havendo dos nossos nem um só morto»...
Expulsos os Franceses da 1.ª Invasão e reposta a ordem, seguiram-se, no ano seguinte (de 1809), trabalhos de fortificação da vila, sob direcção do Coronel Manuel de Sousa Ramos, governador militar da Praça (nomeado a 10 de Fevereiro). Entretanto, decorria no Norte a 2.ª Invasão (Março-Maio), que felizmente não teve repercussão em Abrantes. Pouco depois, por volta do dia 13 de Junho, chega aqui o novo homem forte do exército português, general Arthur Wellesley (1769-1852), mais tarde duque de Wellington, que ajudara a expulsar Soult do Porto, e numa carta sua para o ministro da guerra descreve-lhe o «estado lastimável em que se encontra o quartel de Abrantes» e pede mais investimento. [3] Vem também o marechal Beresford, que em carta datada de 25.7.1809 para o mesmo ministro tece considerações sobre as operações militares e os víveres necessários. E de tal modo Abrantes passa a ser considerada fulcral no plano estratégico do território, que é classificada pelo Governo como Praça militar de 1.ª Ordem (16.12.1809), tendo como governador militar um Marechal de Campo (João Lopes de Sousa). Para o efeito é então aqui estacionado um poderoso conjunto de corpos militares e criado também um dos principais depósitos de munições e víveres. E terá sido decerto nessa sequência que se terá reatado o conceito (algo estático, convenhamos) do “Quartel-general em Abrantes”...
É natural que tenha sido também por essa altura que se iniciou no Tejo a construção da ponte militar de barcas, com cais de pedra na margem esquerda-sul (os impropriamente chamados «Mourões» ou “murões” do Rossio ao Sul do Tejo), com um interessante projecto do coronel do Real Corpo de engenheiros Manuel de Sousa Ramos (1749-1832), e de que existe a planta, recentemente identificada num arquivo nacional. [4] O que resta do imóvel foi entretanto classificado de Interesse Público, pelo Decreto-Lei n.º 251 de 3.6.1970, na altura ainda sem se saber do que se tratava ao certo, pelo que o legislador lhe chamara prudentemente um «conjunto de pilares»... Outro pormenor importante: dos projectos de um capitão inglês, Patton, fazia parte a demolição da igreja de S. Vicente, por em sua opinião estorvar o traçado das fortificações da Praça militar. Felizmente que o capitão-eng.º foi incumbido de outra missão, com o que muito folgaram os abrantinos.
Entramos, assim, em 1810. Os primeiros meses do ano continuaram a ser vividos em clima de guerra, com a chegada de mais tropa a Abrantes, aos milhares (regimentos de Soure e da Lousã, com cerca de 6000 homens), e a adaptação do convento de S. Domingos a hospital militar (já funcionava em Abril). Em Maio (22), de Abrantes, Gabriel António Franco de Castro, coronel comandante de Artilharia entre Tejo e Mondego, redige um «Relatório das experiências feitas no campo da Chainça junto a Abrantes, com oito obuses que guarnecem a mesma vila, na presença do Sr. Governador marechal José Lopes de Sousa». Em Junho chega a divisão luso-britânica, comandada pelo Gen. Rowland Hill, com cerca de 10 000 homens. Por essa altura corria já, pelas fronteiras da Beira Alta (em direcção a Almeida), a 3.ª Invasão, comandada pelo general Massena («o filho querido da vitória» por nunca ter sido derrotado), à frente de 80 mil homens.


Sir Arthur Wellesley, depois visconde e duque de Wellington («le duc de fer», 1769-1852), uma das principais figuras político-militares do séc. XIX, esteve em Abrantes.


Abrantes na Guerra Peninsular (1810) – mapa militar demarcado pelo perímetro Abrantes-Punhete-Sardoal, tendo assinaladas as diversas posições da tropa aliada em torno da vila.

[1]
Citemos o caso da Academia Tubuciana e do seu membro mais entusiasta, o afrancesado Diogo Soares de Bivar, que Junot nomeou novo juiz de fora, e que mesmo numa fase já de insatisfação geral prestava à regência esta informação: «Tout est tranquille à Abrantes. Rien n’annonce le moindre mouvement, ni même d’inquiétude. Les habitants s’apprêtent à loger un corps d’Infanterie française que l’on y attend» (carta de 28.6.1808).
[2]
Há autores, como Valdez dos Santos, que falam também de um «combate de Abrantes», que se teria registado no dia 12 de Agosto, com a intervenção de Infantaria 24. Mas não detemos mais pormenores.
[3] Carta de 14.6.1809, existente no Arquivo Histórico Militar, ibid., 14/010/04, 2 fls. ms.
[4] Foi em 1984, no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Lisboa), através do então major Fernando Salgueiro Maia, e tem por título «Ponte melitar [de barcas] estabelecida no Tejo da Villa de Abrantes em Dezembro de 1808» [aliás entre o Verão de 1809 e Novembro de 1811]. Cf. Joaquim Candeias Silva, «Os “Mourões” do Rossio de Abrantes – Afinal, a ponte romana era um cais... do séc. XIX», Conimbriga n.º 24, Universidade de Coimbra, 1985, pp. 177-185.



A 3.ª Invasão Francesa – a pior fase da Guerra


Esta invasão da Península, que Napoleão e os seus conselheiros reputavam de decisiva, de molde a colocar todo o território sob a sua tutela e a impor uma «nova Europa», foi, sem dúvida, a mais violenta e de consequências mais desastrosas. Não irei aqui alongar-me em considerações genéricas, que são mais ou menos do conhecimento geral, mas não quero deixar de registar os principais acontecimentos, que abordarei de forma diacrónica, pois assim se espelha melhor o ritmo das movimentações de ambos os lados do conflito. A invasão decorreu ao longo dos meses de Agosto e Setembro de 1810, tendo os estrategas ingleses adoptado uma política de “terra queimada”, que na opinião de Joaquim Veríssimo Serrão consistia no dever de as pessoas abandonarem as suas casas e os campos, destruírem os seus haveres e as culturas: «Massena não devia encontrar um país vivo, mas um deserto, sem habitantes nem víveres para o seu exército. E quem não cumprisse a ordem do general inglês [Wellington] seria considerado traidor.» [5]
É certo e sabido que nem todas as pessoas iriam proceder assim. Mas, perante a expectativa de um ataque iminente à vila e fortaleza de Abrantes, houve bastantes abrantinos que fugiram com o que puderam, indo acolher-se ao interior das linhas defensivas de Lisboa, que entretanto haviam sido construídas.
O ritmo dos sucessos foi então como segue:

- Em Agosto de 1810, o juiz-vereador de Abrantes, José de Moura Castanho, escreve ao Ministro da Guerra a pedir a mudança dos religiosos para outras instalações. [6] Pela mesma altura é pedida uma contribuição extraordinária para a defesa do Reino; e uma carta precatória do Corregedor de Tomar, datada de 22.8.1810, para o juiz de fora de Abrantes, pede que este retire o dinheiro dos cofres da CMA, para que este «não caia nas mãos do inimigo», prova de que a vila corria sérios riscos de ser tomada.

- De 9 de Outubro desse ano até 7 de Março de 1811, tropas de Massena quase terão cercado a vila, que uma vez mais foi defendida pelas tropas aqui aquarteladas. Foi por essa altura que muita gente das aldeias do norte se refugiou na vila e muitos abrantinos abandonaram a vila, indo acolher-se às Linhas de Lisboa. Entrara-se então na fase mais dura da guerra, parecendo certo que, a 9 de Outubro, Massena chegou a mandar pôr cerco à Praça, o que fez temer o pior. O povo que restava e a tropa da guarnição, ainda reforçada com a chegada de mais regimentos (Infantaria 13, 20 e 22), defenderam-se então com denodo, apesar das muitas privações e doenças que tiveram de suportar.

- 1811 – Em Janeiro (11?), notícias de Abrantes diziam que «Os Franceses, depois de terem entrado no Sardoal e saqueado a povoação, se retiraram deixando uma pequena guarnição; porém, 70 homens do Regimento de Infantaria n.º 13 (de Abrantes), que se haviam emboscado nas vizinhanças daquela vila, caindo sobre a guarnição os pôs em fuga, matou alguns inimigos e resgatou o que haviam roubado, fazendo-lhe além disto 4 prisioneiros» (in «Do combate de Abrantes...»).

- Também no Livro de Actas da CMA, na sessão de 19.1.1811, o escrivão registou: «Nesta vereação detreminaram a mim escrivão da Camara que se posessem em segurança e arrecadação todos os titulos e livros e papeis mais entressantes a esta Camara, fazendo o procurador a despesa nesessaria que se lhe levará em conta, visto que se acha o inimigo tam procimo desta villa».

- Fevereiro, 26 – Nova vaga de destruição campeia por algumas povoações do norte do concelho, perpetrada pelo exército francês, que ocupava Tomar. Até 5 de Março a vila continua gravemente ameaçada e sob férreo controlo militar. A partir desta última data os franceses começam a bater em retirada (Massena desiste dos seus gerais intentos só em Abril de 1811). A guerra, porém, não acabara em definitivo, porque havia ainda bolsas de resistência em várias partes.

- Maio, 15 – Na vereação de Câmara deste dia, vista a extensão do termo e a devastação que nele causara o inimigo, por proposta do presidente, acordou-se em requisitar a remessa do trigo necessário para este concelho. Na mesma data emitia a Intendência um ofício a dar conta do depósito de 2 066 arrobas de bacalhau, que se iam remeter da cidade de Lisboa para esta vila.

- Junho, 20 – Havia então problemas com a falta de lenha para a tropa acantonada na vila («para arranxo»). A vereação queixa-se também que a câmara não só se achava carenciada como até «individada pela grande deminuição que nas suas rendas tem havido».

- Junho, 27 – Numa carta precatória, o provedor de Tomar envia ao juiz de fora de Abrantes um documento régio de 15.5.1811 sobre excessos praticados pelas tropas. São entretanto estabelecidas listagens dos preços de muitos produtos, para procurar travar a carestia dos mesmos.

- 1812, Fevereiro, 4 – Nos termos de uma precatória de 15 de Janeiro, comparecem na CMA os párocos das freguesias que foram «invadidas pelo inimigo», com dois informadores, a fim de darem conta dos órfãos menores de 10 anos, desamparados, sem bens nem tutor ou parente que se incumba da sua educação.

- Abril, meados – Há tropas francesas, que em desespero de causa e em desagregação, despontam em alguns lugares. A partir daí dá-se o seu retrocesso em retirada definitiva para a fronteira.

- Dezembro, 30 – Regista-se nesta vila o aquartelamento de mais um corpo de tropas britânicas.

- 1813, Janeiro, 20 – Wellington, field marshal em Portugal, visita Abrantes a expensas da CMA. O principal objectivo era reordenar as defesas para eventuais ataques futuros.

- Agosto, 13 – Esconjurado o perigo francês, são mandadas suspender as obras de reforço à fortificação da vila.

- 1814 – Neste ano, perdida a sua eficácia, é mandada retirar pelo Governo a «Ponte de barcas do Tejo» (de encontro aos “murões”), e restabelecido o antigo sistema de barcas móveis.

- Junho, 26 – O 1.º tenente António José da Cunha Salgado, de Abrantes, redige um relatório sobre as fortificações de Abrantes: «Conteúdo e história das fortificações da vila, estado actual das obras da Praça e trabalhos que seria útil empreender para sua defesa». O mesmo oficial, na mesma data, remete ao brigadeiro do Real Corpo de Engenheiros, Manuel de Sousa Ramos, a memória e a planta da Praça de Abrantes por ele levantada.

- Agosto, 3 – Na CMA ainda é apresentada uma reclamação dos mesteres, em nome do povo que representam, na qual se queixam de «propriedades perdidas ou estragadas, de estarem sem meios, sem fundos, de negócios estagnados, das lavouras perdidas (...) por meio das aquarteladas, nas suas próprias casas, bestas e barcos embargados».

Para uma visão de conjunto, acerca do que foi o esforço financeiro da CMA, apresento de seguida um quadro com as Contas públicas da gerência desses anos difíceis:

Receita e Despesa da Câmara de Abrantes (1810-1815)

Anos
Receita
Despesa
Saldo - líquido (após dedução da terça régia)
1810
1301$796
1428$255
- 560$391
1811
1192$520
949$073
- 154$053
1812
893$010
991$591
- 396$251
1813
1167$613
1094$465
- 316$056
1814
1552$380
1035$437
- $517
1815
1690$215
1010$297
+ 116$$513

N.B.: Tanto na receita como na despesa, haveria que deduzir sempre a terça real para se apurar o líquido. Relativamente ao ano de 1810, são de salientar as despesas com levas de presos (6$600), aposentadoria de generais (1$350) e sobretudo o conserto de edifícios, como quartéis do Castelo, cadeias, telhados da Câmara, etc. (total - 284$280).

As Vítimas no limite urbano da vila de Abrantes

- A paróquia de S. João esteve ocupada com víveres, pelas tropas portuguesas estacionadas na vila. Faltam também os assentos paroquiais desse período (extraviou-se o livro ou livros que compreendia(m) os óbitos de 1802 a 1820), pelo que não nos é possível conhecer mais pormenores acerca da mortalidade. Sabemos somente que no «Rossio d’Além do Tejo», então adstrito a S. João, funcionava em Outubro de 1810 um Hospital militar, também com cemitério (militar), mas de que ignoramos os sepultados... A capela de S. Sebastião foi logo em 1807 desactivada/profanada e transformada em palheiro.

- Também a igreja paroquial de S. Pedro (de que não sobraram assentos posteriores a 1772) foi impedida de prestar serviço religioso, tendo passado a servir de calabouço aos “prisioneiros franceses que saíram de Espanha” em 1808 – sabemos apenas que aí se achou morto (entre os presos), a 9.1.1809, um soldado espanhol pró-francês, que ficou sepultado no adro da paroquial de S. Vicente como pobre, por mandado do rev.º Dr. arcipreste desta vila, José Castanho de Oliveira. Esta igreja paroquial viria mais tarde a substituir a de S. Vicente até final das guerras (meados de 1811).

- Relativamente à paróquia de Santa Maria do Castelo, cujos últimos assentos conhecidos se prolongam até 1832, apura-se que no período 1811-1815 a igreja «estava embaraçada» (impedida), pelo que os poucos defuntos aí registados foram transferidos para S. Pedro.

- Quanto a S. Vicente... os registos paroquiais estão completos e podem constituir para a investigação um excelente mostruário e guia dos acontecimentos. Vale a pena percorrê-los com atenção.
Assim, relativamente à 1.ª Invasão, não encontrei neles nenhuma vítima portuguesa; e dos franceses, regista-se aqui apenas, a 20 de Agosto de 1808 (na sequência da restauração da vila), a morte do Corregedor-mor francês, nas Casas da Câmara e em condições dramáticas por ser pessoa muito respeitada, «com o sacramento da Extrema Unção e absolvição sub condicione por não haver tempo para mais». [Soube-se que, na tentativa de fuga, depois de ter passado o Tejo a vau e se ter escondido numa vinha, foi descoberto por um paisano pouco escrupuloso, que o ludibriou, espoliou, esfaqueou com cinco golpes na cara e abandonou no caminho para Ponte de Sor; encontrado no dia seguinte por umas mulheres, esvaído em sangue, ainda foi confessado a tempo pelo cura da Bemposta, conduzido à vila e tratado, mas acabaria por sucumbir]. Foi sepultado na igreja de S. Vicente, em cova da fábrica, após missa de corpo presente. Seria, aliás, o único francês a ter sepultura condigna... Dos restantes 72 mortos, por não serem geralmente considerados católicos, é provável que tenham sido enterrados numa vala comum, fora de espaço sagrado, e palpita-me que o tenham sido na chamada Tapada dos Defuntos, a caminho do Tejo, onde nos começos de Novembro de 1870 (aquando da abertura do ramal da vila para a nova ponte) apareceram muitas ossadas humanas...
Cerca de 13.6.1809, coincidindo com a chegada de Wellesley, já a igreja estava impedida (a servir de armazém do trem de guerra), passando a paróquia para S. Pedro, como vimos. As pessoas que a partir daí iam falecendo passaram na sua maioria a ser sepultadas no adro vicentino. Entre os defuntos que constam dos assentos merecem referência especial: a 22.6.1809, José Collings, soldado irlandês do Regimento n.º 32 (contingente britânico), que foi sepultado no adro desta paroquial, «por se justificar ser católico»; a 29 de Agosto, Francisco Raimundo, natural do Vale de Figueira e que estava instalado na Rua das Rodas, soldado miliciano da 8.ª Comp.ª do Regimento de Santarém, e no mesmo dia um menor de 7 anos (Duarte), filho de Guilherme Novuio e Clara Dernott, ambos irlandeses, donde se pode concluir que também vinham mulheres e crianças entre os militares (!); a 8.9.1809, outro menor (João), filho do soldado mil.º Joaquim António, do Regimento de Tomar; a 15.11.1809, uma irlandesa, Genia Bornes, casada com Guilherme Bornes; 9.1.1810, José Francisco Peixoto, ajudante do Regimento de Milícias de Soure; a 23.5.1810, Bernardo Correia, soldado mil.º do mesmo Regimento, natural de Corujeira (S. Martinho do Bispo, Coimbra); a 24.9.1810, Manuel Marques, soldado mil.º da 6.ª Comp.ª do Regimento da Lousã, natural da Venda do Negro (bisp.º de Coimbra); e, a 30.9, Maria da Silva, casada com o soldado artilheiro do Regimento do Algarve, Manuel da Fonseca, esta sepultada no cemitério da Santa Casa por ter morrido no hospital.
Entrou-se então na fase mais dura da guerra (3.ª Invasão), como vimos, com a ameaça de assédio por parte de Massena e a fuga atabalhoada da população. É então improvisado um novo Hospital Militar, fora da vila, no Rossio d’Além do Tejo, tendo anexo um cemitério. Os registos de S. Vicente dão-nos pistas para o que se terá passado: A 15.10.1810, vão a sepultar nele um Manuel Valente e uma Ana da Conceição (viúva), e depois outros mais; a 9 de Dezembro é a vez de Julião Agostinho, soldado da 5.ª Comp.ª do regimento de Infantaria 13, natural de Coentral Grande (Pedrógão Grande), e de Manuel Joaquim, soldado da 8.ª Comp.ª do mesmo regimento, natural de Camilo (Ega), mas estes já sepultados no adro de S. Vicente; no dia 12, chega a hora de Manuel Francisco, natural de Mendiga (Porto de Mós), almocreve na brigada do Regimento de Arouca; e a 16, dos soldados Manuel Ribeiro, de Oleiro (Torres Vedras), e de Manuel João, de Cabeda (S. Lourenço), respectivamente da 2.ª e da 3.ª Comp.ª, todos enterrados no adro devido ao impedimento da igreja. Depois, começa a chegar e a morrer cada vez mais gente, vinda de diversas terras ao norte de Abrantes e de concelhos próximos, sobretudo Sardoal e Tomar (Vide Quadro seguinte).
Dos militares falecidos, e considerando apenas os graduados, anotam-se os seguintes: Capitão António Justino de Carvalho, da 5.ª Comp.ª do Regimento de Milícias da Lousã, no mesmo hospital a 26.1.1811; sargento Domingos Martins, de Avelade (?), da 6.ª Comp.ª do Regimento n.º 20, falecido no hospital militar a 27; o sargento José do Espírito Santo, natural da cidade de Elvas, do Regimento de Infantaria 22; o cabo da esquadra do mesmo Regimento, Manuel Ignácio, da 8.ª Comp.ª; e o sargento Joaquim Alves, natural de Torgueda(?) (bisp.º de Lamego), da 7.ª Comp.ª do Regimento de Milícias de Arouca, os três a 17.2.1811; o cadete João António Jácome de Sousa Morais, natural de Casas Novas (S. Vicente de Redondelo, Chaves), da 5.ª Comp.ª do Regimento de Cavalaria n.º 9, falecido a 3 de Março no hospital militar da Graça (Abrantes) e sepultado no cemitério da igreja de S. Pedro (que substituía a paroquial de S. Vicente); o capitão José Pires Serra, da 1.ª Comp.ª de Granadeiros do Regimento da Lousã, falecido a 21 do mesmo mês e sepultado no cemitério de S. Pedro Novo; o cabo de esquadra da 6.ª Comp.ª do Regimento de Artilharia n.º 1, Venceslau José Lopes, «sendo atravessado de muitas estocadas», a 1 de Maio; e o alferes José Cabral de Quadros, da 1.ª Comp.ª do Regimento n.º 13, falecido a 22 de Junho. A extensa listagem, que inclui mais regimentos e outros aspectos com interesse, encerra com o capitão-mor de Abrantes, Álvaro Soares de Castro e Ataíde, que faleceu em Lisboa e aí foi sepultado, na igreja de S. Nicolau (registo de 16.11.1811).
Sublinha-se, contudo, que em caso algum se alude a mortes em combate, ou provocadas por armas ou militares franceses.

Registos de Óbito da freg.ª de S. Vicente

Anos
Jan.
Fev.
Mar.
Abr.
Mai.
Jun.
Jul.
Ago.
Set.
Out.
Nov.
Dez.
1807










7
10
1808
12
7
4
9
12
6
15
4
6
10
9
6
1809
11
8
6
9
7
9
19
28
16
7
10
14
1810
8
8
8
6
5
6
12
11
11
14
3?
13
1811
63
69
85
53
37
21
16
12
14
23
11
9
1812
9
8
3
8
11
13
18
26
24
29
14
9


Anos
Somas
1807
----
1808
100
1809
144
1810
105
1811
413
1812
172


As vítimas em meio rural – Um relance pelas freguesias de Abrantes

-
Aldeia do Mato

Foi, juntamente com o Souto, uma das mais sacrificadas... Segundo o testemunho do seu cura-reitor António de Matos Ferraz, que fugiu da paróquia amedrontado, «No mês de Novembro de 1810 entrárão os Franceses nesta freguesia e no ano de 1811, e destruírão a igreja matriz de maneira que só deixárão ás paredes, e matárão muita gente desta freguesia e de outras mais, e presentemente digo missa nas casas da minha residência, e para constar fiz a presente declaração» (RP).
As vítimas directas à mão da tropa francesa somaram 13 moradores com morte violenta e imediata, que a seguir se discriminam, todos em 1811:
- A 21 de Março – João Soares, do Souto, sepultado no campo em um lugar bento e assinalado pelo cura, registado a 27; e um outro indivíduo que o cura identificou como sendo do lugar do Contraste, sepultado a 22 também em campo bento.
- Achados mortos entre 27 e 29 de Abril e todos enterrados no campo – António Amaro, natural do Souto e que morava a soldada com Manuel Fernandes, das Fontainhas; Simão Joaquim, que era casado com Maria Antónia, da Medroa; Manuel Rodrigues, casado com Damásia Maria, da Medroa; Cipriana, filha do casal anterior; Manuel Francisco, viúvo de Mariana Vicente, do lugar das Casinhas; outro Manuel Francisco, casado com Maria Nunes, da Carreira do Mato; Manuel Pires, casado com Ana Maria, da Carreira do Mato; Francisco, filho do casal anterior; João, criado de António José dos Santos, também da Carreira; José Lopes, ainda da Carreira; um outro Manuel Francisco, casado com Eugénia Maria, da Cabeça Gorda.
- Achado morto pelos franceses a 3 de Maio – José dos Santos, do lugar das Figueiras.
Contudo, analisando globalmente os óbitos da paróquia, verificamos que os custos indirectos terão sido enormes, pelo pânico instalado mormente entre crianças, pela doença (“maligna”) e pela fome, «por estar a freguesia invadida do inimigo». Assim, se em 1807, ano da 1.ª invasão, encontramos apenas 13 óbitos, em 1808 já se registou uma ligeira subida (21), em 1809 houve 19 e em 1810 (ano da nova invasão) outros 19; mas em 1811 as cifras ascenderam a um total record de 82 óbitos, sendo os piores meses os de Abril com 32 (11 assassinados pelos franceses), Maio com 24 e Março com 7 (2 pelos franceses); em 1812 houve 24 e em 1813 houve 18. Faltam os dados completos de 1814.

- Alvega
Nenhuma anomalia se assinala nos livros de assentos ao longo dos anos de 1807 a 1810, não se dispondo de dados a partir de 12 de Maio de 1811. Nos primeiros meses deste último ano, porém, não só se verificou um aumento substancial da mortalidade (48 em Janeiro/Fevereiro e 36 em Março Abril), como um aumento de deslocados vindos das freguesias da margem direita/norte do Tejo, tendo mesmo ocorrido uma morte, a 13.1.1811, de um indivíduo chamado João Marques Casquilho, do Casal da Carregueira (Mação), «morto pelos Franceses junto ao mesmo rio Tejo no sítio das Fouzeiras», o qual foi sepultado no dia 17 seguinte no adro de Alvega. A falta do livro de assentos seguinte, que incluía o período crítico de 1811-1812, poderá no entanto esconder algo de anormal...

- Bemposta
Não registou esta freguesia especial anormalidade demográfica entre Novembro de 1807 e Janeiro de 1812, para além de um substancial aumento da taxa de mortalidade: em Outubro de 1810 todos os covais da igreja estavam impedidos, pelo que se recorreu ao adro. Contudo, também desta freguesia desapareceu o livro de óbitos seguinte, que incluía o ano de 1812.
Por tradição consta que, no sítio da Salgueirinha, um grupo de soldados franceses em fuga defrontou habitantes da zona. É possível que se trate do episódio de 17.8.1808, que envolveu a fuga e a morte do corregedor francês, a que já acima aludimos...

- Martinchel
Terá sido, seguramente outra das freguesias sacrificadas, mas faltam os dados: No ANTT os assentos vão só até 1772 [no Arquivo Distrital de Santarém (= ADS) temo-los somente após 1860].

- Mouriscas
Nada de anormal até 1808, salvo um assento a assinalar a morte «de repente com hum tiro pelos franceses» de José Álvares, do Casal do Pinheiro desta freguesia, a 4.12.1807, no decurso da 1.ª Invasão. Mas em 1809 o número absoluto dos óbitos sobe de 24 (do ano anterior) para 84, saldando-se em 1810 nos 50, em 1811 nos 86 e em 1812 nos 35, um sintoma evidente da crise trazida pelas invasões. Vítimas directas, «na guerra», há a registar apenas mais um morador, o miliciano José dos Santos, do Casal da Igreja, no dia 20.4.1811. Os Óbitos de 1811 assinalam, porém, alguns casos de pessoas que faleceram sem sacramentos «por causa da opressão da tropa francesa» (em Fevereiro) ou que se encontravam «refugiadas da tropa francesa» em casais desta freguesia (Engarnais Cimeiros - 1 e Entre Serras - 3, todos estes vindos do Sardoal), em Alvega (4, todos falecidos na primeira quinzena de Março) e no Pego (Casal dos Facheiros, 1, Bernardo Delgado, do Casal dos Canenhos). É de salientar ainda a morte de dois soldados portugueses, um do Regimento de Infantaria de Chaves, no Casal dos Cascalhos, a 12.8.1811; e o outro da 1.ª Comp.ª de Granadeiros, natural do concelho de Penaguião, que ia conduzido ao hospital de Abrantes, e morreu de repente em Abril de 1812 na estalagem de Francisco Denis.

- Pego
Faltam informações para o período em análise: livros de óbitos no ANTT só os temos até 1773; no ADS, só após 1819...;

- Rio de Moinhos
Aparentemente também nada de anormal ocorreu nesta freguesia, para além do natural acréscimo do número de óbitos nestes anos da Guerra: em 1809 ascenderam os valores absolutos a 79 (tinham sido apenas 28 em 1808), baixaram a 45 em 1810, voltando a subir nos anos seguintes (87 em 1811 e 48 em 1812).

- S. Facundo
Situação idêntica à do Pego e Martinchel: o livro de óbitos do ANTT só vai até 1803; no ADS, só após 1825...

- S. Miguel do Rio Torto
Faltam os assentos desde Junho de 1807 a 28.11.1809. Os anos seguintes registam óbitos acima da média (56 em 1810, 89 em 1811 e 60 em 1812), mas apenas num caso se diz que foi morto pelos Franceses: ocorreu esse óbito a 24.12.1810, na pessoa de José Rodrigues Braz, que era de Aldeia do Mato, casado com Maria Teresa, tendo a vítima ficado sepultada na igreja de S. Miguel, sem sacramentos. Particularidade de notar é o enterramento nesta mesma igreja de duas pessoas em 3 e 4 de Novembro de 1811, respective João Castanho Bertinho, da freg.ª de S. João (Abrantes), e Soror Rita Joaquina do Céu, do Convento da Graça, «por S. João e S. Domingos se acharem ocupados com víveres para as tropas (portuguesas)».
Nesta freguesia existe a capela de N.ª Sr.ª da Conceição, que segundo a tradição se ficou a dever a um episódio das Invasões por aqui ocorrido [entre 1808-1812], tendo na ocasião um oficial francês oferecido uma belíssima imagem da Senhora da Conceição (em jaspe) a uma lavradora do Valongo ou Vale Longo, que o tratara como boa samaritana [Ao que julgo saber, a senhora chamava-se Mariana Lopes, e o oficial bem poderia ter sido o corregedor francês ou um seu subalterno dos que se escapuliu para aqueles lados depois da tomada de Abrantes a 17 de Agosto de 1808]. Donde afinal se prova que, neste processo histórico, os franceses não cometeram somente violências e latrocínios: também souberam ser gratos e generosos...



A belíssima imagem de N.ª Sr.ª Conceição, que se guarda em S. Miguel do Rio Torto

- Souto
Não obstante os assentos paroquiais desta freguesia nada revelarem de anormal, a avaliar pelo que nos chegou via paróquia de S. Vicente e também pelas queixas dos moradores aos responsáveis do reino, parece indubitável ter sido o Souto uma das áreas mais afectadas. Logo na entrada de Junot por S. Domingos, nos finais de Novembro de 1807, foi devassada a velha ermida do lugar e queimadas as imagens que aí havia. Relativamente à igreja matriz, testemunhava em 27.5.1815 o P.e José dos Santos Baptista, morador no Souto, perante o corregedor da comarca: «...pelo ver, ser público e bem notório, [afirmo] que a igreja matriz, pela invasão última do exército francês [finais de Abril de 1811], ficou inteiramente arruinada e destruída, assim como as imagens dos seus santos queimadas e despedaçadas». De resto, a taxa de mortalidade cresceu muito: 31 óbitos em 1807, 56 em 1808, 87 em 1809 e, de 1810... 31 só até 26 de Agosto [Falta o livro do assentos de defuntos seguinte, de Setembro 1810 a 1820, que seria o principal como fonte informativa e aquele que discriminaria as vítimas]. ;

- Tramagal
Pelo menos aparentemente, nada sofreram os moradores desta freguesia para além dos efeitos gerais da crise. A análise estatística dos assentos revela a seguinte evolução: em 1808 = 27 óbitos, em 1809 = 19, em 1810 = 65 (sendo 49 só nos três últimos meses), em 1811 = 92 (sendo 52 nos três 1.ºs meses), em 1812 = 20, e em 1813 = 21.

As vítimas em alguns dos concelhos vizinhos

- Constância
Esta vila foi, confirmadamente, uma das mais vandalizadas pelas hordas francesas. Não detemos, contudo, a listagem das vítimas nem dos prejuízos por falta dos imprescindíveis assentos paroquiais, o que só por si é indício de ter havido problemas muito graves (com roubos e destruições). O livro de óbitos n.º 4 expira em Janeiro de 1773 e o n.º 5 só tem início em 20.5.1811, quando já tinha passado a fase mais grave dos desacatos (que ocorreu nos finais de Abril). Para agravar este quadro informativo, verificamos falhas de vária natureza nos registos (lapsos, desordem, emendas), saltando de 8.8.1811 para 24.1.1812. Nenhum dos óbitos registados se relaciona directamente com as Invasões, mas o facto de os finados serem sepultados maioritariamente na Misericórdia deixa perceber que a matriz estaria superlotada. Relativamente às freguesias, tanto de Montalvo como de Santa Margarida da Coutada, não há qualquer referência a vítimas directas das invasões nem a qualquer morte violenta causada por franceses, muito embora possamos admitir que as tenha havido: por um lado, é nítido o aumento dos óbitos no período em questão; por outro, encontramos nos registos alguns casos anómalos. [7]

- Sardoal
Detemos informações apenas relativamente à vila, pois faltam os registos de Alcaravela, Santiago de Montalegre e Valhascos. Na 1.ª Invasão assinala-se somente uma vítima mortal, à passagem das tropas retardatárias de Junot: foi a 29 de Novembro de 1807, Ignácio Lopes, de Alcaravela, solteiro de ± 30 anos, natural d’Amieira (Alcaravela), filho de Manuel Lopes e Luísa Maria, do dito lugar, que sucumbiu sem sacramentos, «porque foi morto com um tiro de espingarda por um soldado francês», sendo sepultado no cemitério da matriz do Sardoal, com missa de presente. Mas aquando da 3.ª, todo o espaço concelhio esteve à mercê da soldadesca napoleónica, com saques generalizados e profanação de igrejas em várias ocasiões, e mormente entre Janeiro e Março de 1811 (Vide retro), contabilizando-se aí pelo menos 8 vítimas mortais, em diversas partes e em apenas dois dias de meses e anos diferentes, quase todos mortos a tiro:
No primeiro dia, 8.12.1810: Bernardo José, alfaiate, dos Andreus, casado com Perpétua Joaquina, «sem sacramentos por ser morto pelos franceses de tiro de bala na sua mesma aldeia, e foi sepultado no campo alguns dias depois de haver sido morto, por não haver quem o conduzisse à igreja por causa da invasão do inimigo»; José Pedro, também dos Andreus, maior de 60 anos, casado com Maria Joaquina, «porque o inimigo invadiu a mesma aldeia», igualmente sepultado no campo três ou quatro dias após; João Rodrigues, moleiro, ainda dos Andreus, de ± 80 anos, casado com Luísa Maria, «morto a tiro de bala pela tropa inimiga em uma estrada junto à Venda da Laranjeira», não se sabendo onde foi sepultado; e João Dias Navalho, do Mógão Cimeiro, ± 50 anos, casado com Luísa Felícia, «morto a tiro de bala pelos franceses» e sepultado na igreja.
No 2.º dia, 11.1.1811: Bernardo Apariço, casado com Maria Conceição, assistentes no Casal da Cordeira, freguesia do Sardoal, «morto a tiro de bala pelo inimigo», sendo sepultado no campo por não haver quem o conduzisse à igreja; o P.e João Pinto, da Ordem de Palmela [Santiago], natural e morador na vila do Sardoal, «morto pelo inimigo a tiro de bala» e sepultado alguns dias depois no cemitério paroquial; António da Silva, de ± 40 anos, solteiro, assistente no lugar de Entre as Vinhas, também a tiro de bala e sepultado na capela de Santo António do dito lugar; e Francisco Dias, do lugar de Cabeça das Mós, casado com Antónia da Silva, igualmente a tiro e sepultado na igreja do mesmo lugar.

- Vila de Rei
Apesar de pequeno e pouco povoado, foi este mais um concelho da região fortemente sacrificado. Aquando da 1.ª Invasão, os franceses profanaram a igreja e a Misericórdia, utilizando-as como cavalariças. Em termos de vítimas, registou-se apenas uma, mas esta de superior qualidade militar e social: o Sargento-mor da vila, Francisco António Rodrigues, de 71 anos. Foi a 2 de Dezembro de 1807, depois de a tropa lhe ter entrado em casa e ter despedaçado um Cristo e um S. João Baptista.
Seria sepultado no dia seguinte sem sacramentos, no adro da igreja, «por estar incapaz tudo». Donde se infere que a vila terá oposto resistência, ao que os franceses devem ter respondido sem meias medidas decapitando-a. Com a 3.ª Invasão, Vila de Rei volta a ser castigada: são cerca de uma dezena as vítimas arroladas. Nos registos de óbitos, sobretudo entre meados de Dezembro de 1810 e Março de 1811, evidencia-se também grande desordem; as pessoas morrem sem sacramentos e são sepultadas fora da igreja, justificando-se o vigário encomendado «por estarmos refugiados». E mesmo depois, raramente havia lugar para os mortos na igreja, sendo inumados no adro e algumas vezes nos lugares onde morriam ou nos sítios de refúgio (p. ex., Alcamim, Zaboeira).
Assim, a 20.12.1810, morre Maria de Jesus, viúva, na Zaboeira, e foi sepultada junto ao lugar, «por se não poder vir à igreja» [diz uma nota: «daqui para diante não tem havido cruzes nem bandeira»]; a 24.12.1810, são mortos pelos franceses dois indivíduos, José Martins e Manuel Luís, ambos casados e moradores na Cabecinha, sendo sepultados no campo «por estar tudo invadido pelos inimigos franceses»; a 27.12.1810, são mortos pelos franceses mais dois indivíduos, Manuel Álvares, casado com Luísa da Silva, da Portela, e Luísa Dias, viúva de José da Silva, do Lavadouro; 15.1.1811, é a vez de Manuel Álvares, casado com Maria Luísa, também moradores na Cabecinha, «sem sacramento por ser morto pelos franceses e foi sepultado no campo»; a 16.1.1811, segue-se Manuel Nunes, viúvo, «sem testamento nem sacramentos por causa dos franceses»; a 24.1.1811, vem Domingos Dias, casado com Josefa Maria, moradores no lugar da Macieira, «morto pelos franceses e sepultado no campo»; a 4.2.1811, morre Maria Joaquina, moradora na Zaboeira, e foi enterrada junto do dito lugar «por estar tudo invadido pelos inimigos franceses»; a 17.2.1811, é morto Manuel Nunes, carpinteiro, casado com Maria Josefa, moradores no lugar de Milreu, e foi enterrado «junto ao vilar desta freguesia»; e finalmente, a 24.2.1811, é morto pelos franceses Manuel António Martins, viúvo de Joana Maria, moradores no Brejo Fundeiro, e foi «sepultado no campo por impedimento da igreja». [8]

- Mação
Sobre este concelho, onde também se registaram graves incidentes nas duas invasões, veja-se a Monografia do Concelho de Mação (1947), de António de Oliveira Matos, e nesta revista o competente estudo de Jaime Marques da Silva. [9]

- Gavião
O excelente estudo do Rev.º José Dias Heitor Patrão, Gavião – Memórias do Concelho, ed. Colibri, 2003, com o capítulo das Invasões a ocupar as págs. 313-318, dispensa-nos mais comentários. São de notar nele as várias cartas de Wellington escritas desta vila, a 28 e 29.12.1809.

- Chamusca e Tomar
Também estes concelhos beneficiaram já de apreciáveis estudos históricos. Para o primeiro caso, cite-se o contributo de João José Samouco da Fonseca, em História da Chamusca, vol. II, 2002, cap. V, pp. 125-145. Quanto a Tomar, a bibliografia é mais vasta, mas como instrumento de trabalho continua a ser de grande utilidade o volume que engloba o período aqui em análise, Anais do Município de Tomar (1801-1839), da responsabilidade de Alberto de Sousa Amorim Rosa, ed. da Câmara Municipal de Tomar, 1967.

Considerações finais

Entre 1807 e 1814, Portugal e Espanha foram protagonistas a corpo inteiro, no teatro de operações peninsular, da luta multissecular entre França e Inglaterra. Eram, afinal, nesse tempo, as quatro nações com impérios... E, nesse sentido, pode afirmar-se que a Guerra Peninsular foi um episódio central da guerra global que opôs o Império francês de Napoleão ao Império britânico.
Numa análise global aos sete anos desta Guerra, o exército anglo-luso terá sustentado, 15 batalhas, 215 combates, 14 sítios, 18 assaltos, 6 bloqueios e 12 defesas de praças. O número de vítimas é mais difícil de contabilizar – calcula-se que as tropas portuguesas tenham sofrido 5150 mortos, num total de 21 141 baixas. Mas, os civis que acabaram por morrer em lutas, nas chacinas de represália, em resultado de ferimentos, ou as vítimas da fome, de doenças e do medo espalhadas pelos montes, dificilmente contabilizáveis, terão sido muitos mais.
Neste abreviado estudo, procurei ver a Guerra a partir de Abrantes.
Pois bem, se na 1.ª Invasão não houve problemas de maior, servindo Abrantes a Junot mais como um pequeno oásis para retempero de energias e recuperação de algum equipamento, também como porta de entrada num dos poucos eixos viários do território (que todos eram maus); já na 3.ª Invasão o seu papel foi crucial como bastião e sustentáculo da pressão francesa, vinda sobretudo do Norte e Oeste (lado do Zêzere). A vila, com a colaboração dos reforços ingleses, esteve durante algum tempo quase cercada, numa linha de cintura que ia de Constância ao Penhascoso com o inimigo a dois passos no Sardoal e mesmo infiltrado dentro do concelho (quando chegou a dominar Martinchel, Aldeia do Mato e Souto). Ainda assim, não poderão os abrantinos queixar-se muito, porque outras vilas e concelhos sofreram muito mais...
Em síntese, há claramente alguma factologia tradicional que se confirma; há outra que se complementa; mas colhem-se também algumas novidades. Uma delas, muito óbvia, é que não foi a 1.ª Invasão (de Junot) a mais gravosa para as gentes abrantinas, mormente em vidas sacrificadas – a expulsão dos franceses não causou nenhuma vítima portuguesa na vila e os custos nem sequer correram por conta dos locais (foi gente de fora que empreendeu toda a operação). A 3.ª Invasão foi imensamente pior. Outra constatação é que sofreram mais as aldeias situadas ao longo dos corredores de passagem, e sobretudo da Zona Norte (Aldeia do Mato, Martinchel e Souto). Por fim, verifica-se que não foram só os jacobinos e maçons franceses os "maus da fita", como certa historiografia tendeu a fazer crer...
Afinal, entre os invasores também houve espanhóis e de outras nacionalidades; houve sítios onde os invasores nunca entraram e onde os autênticos usurpadores e destruidores foram os "aliados" ingleses. Sobre isto é bem conhecida a história dos tempos seguintes que geraram a conspiração de Gomes Freire de Andrade e a Revolução de 1820. E uma pequena prova, entre muitas outras que poderão aduzir-se, é o documento que em anexo se transcreve (Doc. 2), pois que vem subverter de algum modo a visão tradicional dos acontecimentos, recolocando novas e pertinentes questões sobre a matéria e relançando outras. É que posteriormente e até aos nossos dias muita propaganda e muita animosidade se gerou (geralmente anti-francesa), consoante os preconceitos ideológicos.
Bem verdadeiro é o aforismo que nos diz que a história prevalecente é a dos vencedores. Importa, pois, desmistificar a filosofia belicista. Uma guerra é uma guerra, quase sempre imposta de cima e de longe e não desejada pelos que a sofrem, com vítimas inocentes e a sofrerem de ambos os lados. Por outro lado, neste conflito, se houve páginas de horror e caos, próprias de uma guerra e de uma mentalidade por vezes abstrusa (que é inata ao próprio homem e como tal ainda se vai manifestando hoje, até em sociedades desenvolvidas!), também houve páginas de fraternidade e humanismo, como foi em Abrantes o lamento sentido pela morte do corregedor francês, ou o gesto de gratidão do oficial francês para com a boa samaritana de S. Miguel ao ofertar-lhe a belíssima imagem da Virgem.
Termino com dois apontamentos:
O primeiro para lembrar que, com estas comemorações bicentenárias que se prevêem, Abrantes honra a sua Memória e a sua História. Já o fizera há 100 anos (1907-1911), com um programa evocativo interessante, mas em que ainda prevalecia a ideia da «libertação gloriosa do jugo francês», o nosso «inimigo», como se pode ver pela Acta da sessão da CMA de 17.8.1908 e pela lápide descerrada a 7 de Março de 1911, no muro fronteiro aos lagos do Jardim do Castelo, onde se lê o seguinte:

«1808-1809 - 1811-1911 / 1º CENTENARIO DA GUERRA PENINSULAR. A 17 DE AGOSTO DE 1808, UM GRUPO DE PATRIOTAS ABRANTINOS / ARMADOS DE CHUÇOS E POUCAS ESPINGARDAS, DIRIGIDO PELO CAPITÃO DE CAVALLARIA / MANOEL DE CASTRO CORREIA DE LACERDA, TOMA A PRAÇA DE ABRANTES / OCCUPADA POR 200 FRANCEZES BEM ARMADOS DO EXERCITO DO GENERAL JUNOT. / DE OUT.º DE 1810 A MARÇO DE 1811, DURANTE A INVASÃO DO EXERCITO DO MARECHAL MASSENA, / A MESMA PRAÇA, PONTO ESTRATEGICO IMPORTANTE PARA O EXERCITO ANGLO-LUSO, / MANTEM-SE SEMPRE EM PODER DOS NOSSOS, APESAR DE INVESTIDA PELO INIMIGO, / PADECER PRIVAÇÕES E DOENÇAS, NUNCA SE ABATENDO O MORAL DO POVO / E GUARNIÇÃO COMMANDADA PELO CORONEL JOÃO LOBO BRANDÃO D’ALMEIDA»

Hoje tudo é diferente, pois até temos a colaborar connosco os nossos amigos franceses (de Parthenay), com quem temos um pacto de geminação, aliás o único de Abrantes na Europa!...
O segundo apontamento é a existência em Lisboa (nossa capital), na bela Praça/rotunda de Entrecampos, de um interessante monumento que toda a gente olha e conhece de vista, mas que poucos verão e conhecerão bem. Ele é dedicado «Ao Povo e aos heróis da Guerra Peninsular: 1808-1814». É uma obra do estatuário J. d’Oliveira Ferreira e do arq.º F. d’Oliveira Ferreira, feita em 1932. E, nessa obra, existem diversas homenagens, sendo uma delas – justíssima – precisamente ao Povo e à Cidade de Abrantes, pois aí figura o seu Brasão, voltado para o Rio Tejo e para o coração da urbe. Observem bem, quando por lá passarem: Ao centro está Lisboa, de um lado Torres Vedras (a evocar as famosas linhas de Torres), e do outro... ABRANTES!...



Monumento de Entrecampos (Lisboa), evocativo da Guerra Peninsular.



Pormenor do monumento anterior, com o brasão de Abrantes.



Doc. 1

Ofício dos vereadores da Câmara de Abrantes, datado de 26.12.1807, dirigido à Regência do Reino, em que se queixam da tropa francesa

(Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 3, doc. 3,
pub. por António Ferrão, op. cit. infra, p. 342)

Senhor
Os fieis vassallos de Abrantes tem reprezentado a V.ª Alteza na supplica de nove do corrente mês o quanto são affectos e opprimidos pela afluencia e exigencias das Tropas Francezas e Hespanhollas, que tem tranzitado e rezidido nesta Villa e seu termo desde o dia 23 de Novembro passado, e a cujas requiziçoens temos satisfeito, conquanto reclamando, fazendo dispendios enormes e superiores às nossas forças, suplicando em especial a intervenção do Ex.mo General Junot, a fim de não transitarem por aqui mais tropas e ser este Povo aliviado das que residem nelle.
As (..?..) estão esgotadas dos celleiros das Igrejas e dos particulares, e apenas resta huma piquena porção de pão, que não chega para a sostentação deste Povo pelo tempo de dois meses, e (..?..) separada quantidade para a tropa, a qual veio pelas requiziçoens feitas às Villas de ao redor, e apenas chegaria para trinta ou quarenta dias; e agora somente para quinze ou vinte por ter chegado (..?..) hum batalhão do Regimento 2 dos Suissos, que estava em Santarem. Ha pouco vinho, ainda menos gados vacuum, e nada de (..?..), cujas relaçoens já forão remettidas a V.ª Alteza em officio do Sn.or Corregedor de Thomar.
Nestas circunstancias este Povo e a mesma tropa estamos remmetidos à disgraça e fome horrivel; e portanto supplicamos a V.ª Alteza as providencias tão indispensaveis; e visto que as Villas circunvezinhas são inealiaveis ás nossas requiziçoens, segundo a resposta que recebemos dellas, he necessaria Ordem Superior para que nas Villas d’Allentejo e Beira Baixa bempossão (?) com as nossas requiziçõens dos generos de primeira necessidade. Rogamos mais a V.ª Alteza a faculdade de retrmos aqui os dinheiros publicos das Decimas, Sisas, Subsidios, Bullas e destes podermos tirar os necessarios para suprir as requiziçoens da mesma Tropa.
Abrantes, em Meza da Vereação, de 26 de Dezembro de 1807
(Seguem-se 5 assinaturas)

Num papelito existente junto a este documento, lê-se mais o seguinte:
«Responda-se à Camara d’Abrantes: q. a Regencia fará dar promptas providencias quanto ás subsistencias da tropa linha(?) q. ali se acha aquartelada; e quanto á faculdade q. pedem para poderem ali reter os dinheiros das Decimas, Sisas, Subsidios, Bullas etc, só lhes concede q. possão simplesmente reter os sobejos das Sisas.»

Doc. 2

Carta-reclamação de Manuel José da Silva Paiva, em que – pela 2.ª vez – dá conta dos prejuízos, destruições e roubos causados em Abrantes pelas tropas aliadas

(doc. s/d, c. 1816?, mas referente aos anos da guerra)
(AHM, 1/14/145/44)
[N.B.: O reclamante, Manuel José da Silva Paiva, fora vereador da CMA e um dos fundadores da Academia Tubuciana (em 1802), constando que tivesse recebido também alguns cargos régios, como o de monteiro-mor. Era também rendeiro de um conhecido homem de ciência, o Abade José Correia da Serra (1751-1823), no rendoso Casal de D. António (Pego), e foi nessa qualidade que apresentou a sua queixa ao Governo]

Ex.mo Senhor
Em poder de V. Ex.ª está pendente huma representação feita pelo abaixo assinado, como Rendeiro do Abade José Correia da Serra, do Casal denominado de D. Antonio, sito em Abrantes, na Ribeira de Coalhos, Freguesia do Pego. O Suplicante pede a V. Ex.ª licença para aprezentar algumas ideias, que ainda não são conhecidas sobre o mesmo asumpto.
Na primeira memoria expoz o Suplicante os prejuizos, destruisoens, roubos e perdas feitas no ditto Casal, pelas Tropas das trez Naçoens Aliadas [Portugal, Inglaterra e Espanha] e pelas Brigadas durante sinco anos de huma Guerra tão destruidora de 1809 a 1813. Digo pelas Tropas das trez Naçoens Aliadas, porque os Franceses nunca alli entrarão.
V. Ex.ª acolheo benignamente aquella reprezentasão mandando ao Juiz de Fora de Abrantes que averigoase os factos alegados; elle o executou em pessoa com os seus Escrivaens, nomeando para Louvados os Avaliadores do Conselho que a Camera costuma eleger, deferindo-lhes juramento para desempenho dos seus Oficios.
O Suplicante com equivocação dise que o Corte do Montado do ditto Casal fôra feito por ordem do Engenheiro Brigadeiro Manuel de Souza Ramos, [mas] ao depois veio a saber por noticia, que lhe transmetio o seu Correspondente de Abrantes, que o ditto Brigadeiro naquella Epoca estava nesta Capital [Lisboa], aonde o Suplicante se acha desde Abril de 1809, quando foi obrigado a abandonar a sua Casa e propriedades, emigrando com a sua familia.
O Corte do Montado foi feito no principio do ano de 1810 por ordem do Engenheiro Inglez Pedro Paton: delle sahirão muitas madeiras, para se formarem as trez Pontes, que no ano antecedente de 1810 (sic) tinhão sido destruidas, principalmente as duas de Punhete e Villa Velha [de Ródão], para impedir que os Franceses passassem ao Sul do Tejo quando vierão ás Linhas [de Torres]. Os Louvados havião deduzir este artigo contando os pez dos Sobreiros cortados a que vulgarmente se dá o nome de Chaparros, e tambem os braços tirados das Sobreiras grandes, pois são testemunhas authenticas, que existem, e que se não pódem contestar sem prova de suborno, e não o havendo he mais provavel escapassem ao seu exame algumas Arvores ou braços cortados, para não se ter por acrescentada a sua informação.
Foi naquelle ano de 1810 que o Casal experimentou com mais força as perdas e Roubos das Tropas das trez Naçoens, porque estiverão estacionadas á borda do Tejo da parte do Sul, e como lhe ficava tão vezinho, nelle entravão todos os dias e todas as horas, onde cometterão toda a casta de desordens, Roubando, colhendo e consumindo todos os Gados, Fructos, Pastages, e mais rendimentos. Pela mesma razão do Casal avezinhar com o Tejo e estar cercado das principaes Estradas por onde passavão as Tropas combinadas e tranzitavão as Brigadas, os Roubos e perdas sempre lhe forão eminentes em todos os anos.
O Suplicante se persuade que os Louvados Avaliadores do Conselho, por serem homens de probidade, com grande conhecimento do ditto Predio, e de todo aquelle terreno, havião dezenvolver aquelles prejuizos com a maior clareza, exactidão e verdade, e muito mais pela assistencia do Magistrado e Escrivaens.
Nestes termos suplica a V. Ex.ª o abaixo assinado que se junte estes aos mais papeis, para que á vista delles V. Ex.ª se digne defferir com a costumada rectidão e justiça em beneficio do Abade Proprietario, e mesmo do Suplicante Rendeiro assaz muito infeliz pelo que perdeo na Envazão, e nos dezastres do Cazal, no que receberá Graça e...
Mercê
Manuel José da Sylva Paiva

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Notas:

[1] Citemos o caso da Academia Tubuciana e do seu membro mais entusiasta, o afrancesado Diogo Soares de Bivar, que Junot nomeou novo juiz de fora, e que mesmo numa fase já de insatisfação geral prestava à regência esta informação: «Tout est tranquille à Abrantes. Rien n’annonce le moindre mouvement, ni même d’inquiétude. Les habitants s’apprêtent à loger un corps d’Infanterie française que l’on y attend» (carta de 28.6.1808).

[2] Há autores, como Valdez dos Santos, que falam também de um «combate de Abrantes», que se teria registado no dia 12 de Agosto, com a intervenção de Infantaria 24. Mas não detemos mais pormenores.

[3] Carta de 14.6.1809, existente no Arquivo Histórico Militar, ibid., 14/010/04, 2 fls. ms.

[4] Foi em 1984, no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Lisboa), através do então major Fernando Salgueiro Maia, e tem por título «Ponte melitar [de barcas] estabelecida no Tejo da Villa de Abrantes em Dezembro de 1808» [aliás entre o Verão de 1809 e Novembro de 1811]. Cf. Joaquim Candeias Silva, «Os “Mourões” do Rossio de Abrantes – Afinal, a ponte romana era um cais... do séc. XIX», Conimbriga n.º 24, Universidade de Coimbra, 1985, pp. 177-185.

[5] História de Portugal, VII, Lisboa, 1984, p. 78.

[6] Arquivo Hist.º Militar, 1.ª div., 14.ª sec., 30-6. As freiras do Convento da Graça passaram transitoriamente a Lisboa e Setúbal, tendo regressado em 1813. Quanto às da Esperança, tinham já sido despejadas em finais de 1808 e passado ao convento de Via Longa, devido ao novo traçado da fortificação da Praça de Guerra.
[7] No tocante a Montalvo, os óbitos de 1911 foram pelo menos 21, em 1812 subiram a 30 e em 1813 baixaram aos 20, tendo-se registado a 16 de Maio de 1811 o estranho caso de um homem «que se achou morto no sítio da Gorda, limite de Punhete» e foi sepultado no adro da igreja... Quanto a Santa Margarida, os registos são mais incertos, denotando terem sido (re)feitos a posteriori, por desaparecimento dos primeiros (?). Alguns exemplos: «Faleceu pouco mais ou menos no ano de 1810 (...), pelas informações que pude alcançar foi encomendado pelo cura meu antecessor e sepultado na matriz»; «faleceu Sebastiana, sepultada em um quintal debaixo de uma laranjeira em sepultura benta pelo pároco, visto não haver quem a trouxesse para a igreja»; «mais ou menos no ano de 1810, morreu um soldado rebentado por um carro (?)», sendo sepultado na matriz. O ano de 1810 parece ter sido particularmente crítico nesta freguesia, com meia centena de óbitos, contudo sem que se refira vez alguma ter sido a invasão dos franceses a causa da morte.

[8] Para mais pormenores, cf. José Maria Félix, Vila de Rei e o seu concelho, 1969, cap. IX, pp. 165-174. Este autor refere ainda uma outra vítima vilarregense, Francisco Rodrigues, natural da Milriça (Vila de Rei), que fazia parte do exército português e morreu na Batalha do Buçaco, a 27.9.1810.

[9] Acrescentaremos apenas, no tocante à 3.ª Invasão, duas breves notas. A primeira é sobre a freguesia de Penhascoso (que então ainda integrava o concelho de Abrantes): Foram quatro as vítimas mortais: a primeira, a 14 de Janeiro de 1811, Manuel Maia, do Casal da Queixoperra, casado com Luísa da Silva; e as restantes no dia seguinte – o capitão do lugar, Manuel Pereira Furtado, viúvo de Maria Mesquita; José Lopes, viúvo de Isabel Joaquina; e Francisco Alves da Silva, viúvo de Maria Marques; todos os indivíduos foram mortos violentamente pelos franceses e sepultados no adro da matriz; o assento do defunto seguinte, que foi sepultado na capela de S. José da Ortiga, já não especifica ter sido morto pelos franceses. A segunda nota é sobre a vila/freguesia de Cardigos, que tão em foco estivera na 1.ª invasão: Também desta vez sofreu durante algum tempo as incursões inimigas, tendo daí resultado pelo menos duas vítimas mortais – a primeira a 25 de Novembro de 1810 (André José, cas.º com Joana Maria, moradores na vila) e a segunda a 11 de Janeiro de 1811 (Joaquina, mulher de João da Silva Novo, da Roda).

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Fontes e Bibliografia:


- Arquivo Histórico de Abrantes: Livros de Actas da CMA.

- Arquivo Histórico Militar: 1.ª Divisão, secção 14.ª (1807-1814).

- Arquivo Nacional da Torre do Tombo: - Registos Paroquiais das freguesias de Abrantes e sua região.

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