quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Os custos humanos das Invasões Francesas em Abrantes



Entre 1807 e 1814, Portugal e Espanha foram protagonistas da luta multissecular entre França e Inglaterra. Eram, nesse tempo, as quatro nações com impérios, podendo pois afirmar-se que a Guerra Peninsular, foi um episódio central, da guerra global que opôs o Império de Napoleão ao britânico. Abrantes, pela sua posição estratégica, fez parte do teatro de operações peninsular, sendo considerada de suma importância militar, como chave da província da Estremadura e plataforma logística da maior centralidade.
Não foi fácil chegar a Abrantes, mas a invasão foi uma marcha sem oposição militar. A luta que Junot travou foi apenas contra a intempérie, as condições agrestes do percurso e a falta de reabastecimentos. A 23 de Novembro de 1807 entrou na vila a vanguarda do exército francês. Junot, com a elite da 1.ª Divisão de Infantaria, chegou a 24 e saiu a 26, rumo a Lisboa, deixando aqui uma guarnição de uns 200 homens.
Numa análise global aos sete anos da guerra, o exército anglo-luso terá sustentado 15 batalhas, 215 combates, 14 sítios, 18 assaltos, 6 bloqueios e 12 defesas de praças. O número de vítimas é mais difícil de contabilizar – calcula-se que as tropas portuguesas tenham sofrido 5150 mortos, num total de 21141 baixas. Mas os civis que morreram em lutas, chacinas de represália, em resultado de ferimentos, ou vítimas da fome e de doenças, espalhados pelos montes, terão sido muitos mais.
Não foi a 1.ª Invasão a mais gravosa para os abrantinos. A expulsão dos franceses não causou nenhuma vítima portuguesa na vila e foi gente de fora que empreendeu toda a operação.
Por meados de 1808, aproveitando-se os festejos do Corpo de Deus, generalizou-se a revolta popular, acalentada pelo abandono das tropas espanholas - antes aliadas de Junot - e pela chegada dos primeiros reforços ingleses.
Avisado do desembarque inglês, Junot correu para o litoral e mandou vir o general Loison do Alentejo para Abrantes (8 de Agosto), chegando este aqui no dia seguinte. Julgando Loison que Abrantes estava segura, seguiu para Torres Novas a 11 e depois para Santarém. O encontro francês com a derrota estava marcado, como é sabido, para Roliça e Vimeiro, respectivamente a 17 e 21 de Agosto. Aproveitando essas deslocações das chefias, foi planeada a expulsão dos franceses de Abrantes, ocorrendo a 17 de Agosto (mesma data da Batalha de Roliça).
Correia de Lacerda, capitão de cavalaria, saiu de Castelo Branco a 13, com duas companhias de caçadores paisanos, pernoitando na Sobreira Formosa. A 14 marchou para Vila de Rei, onde ficou até 16. Avançou na tarde desse dia, com uma hoste de 300 chuços e alguns fuzis, indo emboscar-se perto da Abrançalha. Na madrugada do dia 17 aproximou-se da igreja de S. Vicente, onde tomou posições. E enquanto uns escalavam o Castelo, do telhado da igreja atingiam-no outros, pondo os franceses em fuga para o lado do Tejo. Das duas centenas de franceses que compunham a guarnição, terá havido nesse primeiro confronto 52 mortos e 117 feridos ou prisioneiros, ascendendo as baixas finais a 73 e 121, respectivamente.
Expulsos os franceses seguiram-se, em 1809, trabalhos de fortificação da vila. Abrantes passa a ser considerada fulcral no plano estratégico do território e é classificada como praça militar de 1.ª ordem. É então aqui estacionado um poderoso conjunto de corpos militares e criado um dos principais depósitos de munições e víveres.
Entramos em 1810. Os primeiros meses do ano são vividos em clima de guerra, com a chegada de mais tropa a Abrantes - regimentos de Soure e da Lousã, com cerca de 6000 homens - e a adaptação do convento de S. Domingos a hospital militar (já funcionava em Abril).


A 3ª Invasão Francesa – a pior fase da Guerra

Esta invasão da Península foi, sem dúvida, a mais violenta e de consequências mais desastrosas. A invasão decorreu ao longo dos meses de Agosto e Setembro de 1810, tendo os estrategas ingleses adoptado uma política de “terra queimada” que consistia no dever de se abandonarem as casas e os campos, destruir os haveres e as culturas. Massena não devia encontrar um país vivo, mas um deserto sem habitantes nem víveres para o seu exército. Quem não cumprisse a ordem do general Wellington seria considerado traidor.


As vítimas em Abrantes


- A paróquia de S. João esteve ocupada com víveres, pelas tropas portuguesas estacionadas na vila. Faltam os assentos paroquiais desse período, pelo que não é possível conhecer em pormenor a mortalidade. Mas sabe-se que no «Rossio d’Além do Tejo», então adstrito a S. João, funcionava em Outubro de 1810 um hospital militar e um cemitério (militar).
- A igreja paroquial de S. Pedro foi impedida de prestar serviço religioso, servindo de calabouço aos “prisioneiros franceses que saíram de Espanha” em 1808, sabendo-se também que aí se achou morto um soldado espanhol pró-francês.
- Na paróquia de Santa Maria do Castelo apura-se que no período 1811-1815 a igreja «estava embaraçada» (impedida, cheia), pelo que os poucos defuntos aí registados foram transferidos para S. Pedro.
- Quanto a S. Vicente, os registos paroquiais estão completos e podem constituir uma boa amostra: 1808, 100 óbitos; 1809, 144; 1810, 105; 1811, 413 e 1812, 172.

Para analisar as vítimas em meio rural, mais uma vez nos confrontamos com a ausência de documentação, mas existem algumas freguesias que são excepção, verificando-se que os óbitos anuais chegam a aumentar cinco vezes entre 1807 e 1810 e que a partir de 1811 – devido às carências de toda a ordem - ainda crescem para cerca de oito vezes. É o que se passa com freguesias como Aldeia do Mato, Rio de Moinhos, S. Miguel, Souto e Tramagal, sendo certo que as que mais sofreram foram as que ficavam perto dos corredores de passagem.

Ocupada desde Novembro de 1807, Abrantes é uma importante plataforma logística para o exército napoleónico, nas suas movimentações por todo o país, realçando-se a facilidade e rapidez com que se podia efectuar o transporte de “feridos, estropiados e mortos”, na sua maioria franceses, para os hospitais centrais em Lisboa. Uma das fontes sobre o assunto é a "Relação da Expedição", escrita em 1817 pelo Barão Thiébault, chefe do estado-maior do exército de Junot, na 1.ª Invasão. Segundo ele, Abrantes representou muito nos planos franceses, sendo mesmo vista como a «salvação» do exército e «o fim dos seus males», livrando Junot do fracasso prematuro: foi aqui que os soldados comeram as primeiras refeições completas desde Salamanca, se agasalharam, calçaram e puderam cuidar da saúde, num hospital com 300 camas. Também o general Foy, na sua "História da Península sob Napoleão", fala na evacuação de inúmeros feridos para Lisboa, através da importante auto-estrada que é o Tejo, a partir de Abrantes. No “verão quente” de 1808, vindo da sua campanha de terror no norte do país, também Loison faz enviar pelo Tejo cerca de 800 feridos.
Basta uma pesquisa no catálogo do Arquivo Histórico Militar, para nos apercebermos da existência de muita documentação sobre este assunto, referente a Abrantes. São também muitas as referências à existência na vila de um depósito de convalescentes ou de um hospital militar, alternando as duas designações, independentemente das datas. No período que corresponde à segunda e terceira invasões (1809-1814), sendo Abrantes uma vila já administrada pelos portugueses, não é de estranhar a existência de um hospital central de apoio a todas as batalhas que se foram travando no interior do país, verificando-se várias referências à existência de um hospital de Divisão.