quinta-feira, 29 de maio de 2008

Abrantes: posição operacional e nó logístico


Comunicação apresentada pelo Tenente Coronel Pires Nunes, no colóquio organizado pela Biblioteca Municipal António Botto, no dia 23 de Novembro de 2007, para assinalar os 200 anos da entrada das tropas francesas, em Abrantes, chefiadas por Junot.

Pórtico

A Revolução Francesa de 1789 provocou uma enorme convulsão em França, da qual emergiu a figura de Napoleão Bonaparte, que se fez coroar imperador em 2 de Dezembro de 1804. Por toda a Europa, as monarquias absolutas temeram ser vítimas das ideias revolucionárias idas de França e sentiram-se, depois, ameaçadas pelas armas napoleónicas. A Inglaterra, a Áustria, a Rússia e a Prússia coligaram-se várias vezes para enfrentar militarmente a França, sempre encabeçadas pela Inglaterra que nutria ainda uma animosidade recente contra este país que enviara um contingente militar comandado por Lafayette em apoio dos colonos americanos, durante a Guerra da Independência dos Estados Unidos.
O génio militar de Napoleão conduziu a França a sucessivas campanhas vitoriosas na Europa Central mas a insular Inglaterra, que continuava intocável e ameaçadora, cortou as ilusões ao imperador com a derrota que infligiu à armada francesa na batalha de Trafalgar, em 21 de Outubro de 1805. Não tendo capacidade naval para derrotar o seu poderoso inimigo, Napoleão enveredou por uma estratégia indirecta e decretou, em 21 de Novembro de 1806, o Bloqueio Continental contra os ingleses, ao qual Portugal não aderiu, colocando-se ao lado da sua velha aliada, atitude que concitou a animosidade do imperador. Este, continuando sempre vitorioso nas campanhas europeias, impôs uma derrota à Rússia em 7 de Julho de 1807, com a qual assinou um tratado de paz ficando livre para, supostamente com toda a facilidade, se apoderar de Portugal, furtando aos ingleses uma base de onde estes o poderiam ameaçar por oeste.
Neste contexto, ordenou ao general Andoche Junot que invadisse Portugal e decidiu a ocupação militar de Espanha com uma poderosa força, invasões que foram um pretexto para a Inglaterra se opor a esse desiderato e entrar em força em Portugal para abrir uma segunda frente na guerra contra a França.
As três invasões francesas a Portugal, comandadas respectivamente pelo general Junot (1807) e os marechais Soult (1809) e Massena (1810), foram, pois, episódios de uma mais vasta Guerra Peninsular, na qual os verdadeiros inimigos eram a Inglaterra e a França, ambas interessadas no domínio da Península Ibérica. As tropas francesas de Junot entraram em Portugal acompanhadas por tropas espanholas e logo a Inglaterra reagiu enviando um contingente militar, comandado por Arthur Wellesley, mais tarde duque de Wellington, que foi decisivo para expulsar o general francês. A Espanha juntara-se à França pois confiava no Tratado de Fontainbleau, de 27 de Outubro de 1807, que retalhava Portugal e lhe atribuía uma parte, e pensava retirar vantagens dessa colaboração mas cedo verificou que a estratégia de Napoleão passava também pela ocupação do seu território e pela usurpação do trono espanhol. Quando isso se tornou evidente, o povo espanhol, que já não vira com bons olhos a passagem do exército francês pelo seu território, a caminho de Portugal, revoltou-se e as tropas espanholas em Portugal abandonaram o exército invasor e regressaram ao seu país, deixando Junot enfraquecido. Wellesley, perante a revolta do povo português contra os franceses, seguindo o exemplo espanhol, e o isolamento do exército de Junot, não teve dificuldade em impor-se militarmente, pondo fim a esta primeira invasão francesa.
A partir de então, os ingleses não mais abandonaram a Península e Napoleão passou a ser confrontado com uma estratégia em tenaz, com uma das pontas assentes na Europa Central e a outra na Península Ibérica, que o tempo lentamente foi apertando, tendo o território português assumido um papel estratégico muito importante.

A 1ª Invasão Francesa, ocorreu em finais de Novembro de 1807 ou seja há 200 anos, pelo vale do rio Tejo.
Alguns generais franceses incorporados no exército de Junot escreveram nas suas memórias os horrores que passaram para atravessar a Beira Baixa, deixando-nos a ideia de que seriam aqui derrotados se tivesse havido alguma resistência.
Após a expulsão dos invasores com o auxílio dos aliados ingleses, as colunas militares saídas da região de Lisboa com destino às Beiras ou fazendo o trajecto inverso passaram por norma a atravessar o rio Tejo em Vila Velha de Ródão onde por vezes acampavam, como o comprovam inúmeros documentos iconográficos (pinturas, gravuras, etc.) que alguns militares ingleses, rendidos à beleza da paisagem, nos legaram.
O rio revelou-se, pois, um elemento geográfico de grande valor estratégico aumentando de importância nos anos subsequentes à 1ª invasão, mesmo quando a Guerra Peninsular passou a desenrolar-se em Espanha. Nesta altura o valor estratégico da travessia do rio nesta vila chegou a ser equivalente ao da ponte de Almaraz em Espanha, também no Tejo, nomeadamente quando a ponte de Segura foi destruída.


Súmula introdutória


A penetração dos exércitos napoleónicos pela Beira Baixa deixou uma marca indelével no imaginário colectivo dos seus habitantes. Não raro os acontecimentos são referenciados a dois marcos: o tempo dos mouros e o tempo dos franceses. Na cultura popular o tempo dos franceses está, com alguma verdade, ligado a uma época de rapina e de assalto mais do que a uma época de guerra.
Imediatamente após a Paz de Tilsit (tratado de paz entre a França e a Rússia), assinada a 7 de Julho de 1807, e mesmo antes do Tratado de Fontainebleau, no qual, em 27 de Outubro do mesmo ano, a França se propunha dividir o território português em três províncias e reparti-las, depois, com a Espanha, Napoleão decidiu invadir Portugal. Em Agosto estacionou um corpo de exército em Baiona (Pirenéus ocidentais), com cerca de 30 000 homens organizados em três divisões de infantaria e uma divisão de cavalaria, que tomou a designação de Corpo de Observação de Gironda.
A organização desta força mereceu um cuidado especial. Para a comandar escolheu o já experimentado general Andoche Junot, governador de Paris e antigo embaixador em Portugal .A 5 de Setembro, Junot encontrava-se já em Baiona onde iniciou uma meticulosa acção no sentido de tornar as tropas, na sua maior parte saídas da conscrição [recrutamento] de 1807 e sem qualquer experiência de guerra, dignas dos gloriosos exércitos de Napoleão e tratou da valorização e melhoria do equipamento, elevando de forma notável o seu nível operacional. Para comandante da engenharia foi nomeado o coronel Vincent, mais tarde marechal de campo, militar brilhante, como se pode aquilatar dos seus numerosos relatórios e estudos sobre o território português, e para chefe de estado maior o general Thiébault, que elaborou meticulosos planos, quadros de marcha muito pormenorizados, variadas instruções e escreveu um relatório muito completo sobre esta invasão.
Os serviços logísticos mereceram, igualmente, um extremo cuidado, tendo o seu chefe, o coronel Trousset, pormenorizado variadas ordens no sentido de estabelecer relações com as autoridades espanholas tendo em vista o abastecimento e o alojamento das forças francesas ao longo da sua marcha por Espanha. Tudo parecia ter previsto e organizado nas melhores condições mas verificou-se, depois, que os responsáveis espanhóis, por incúria ou sabotagem, faltavam sistematicamente aos compromissos acordados.
Segundo ordens recebidas em Baiona, o exército de Junot deveria limitar-se a tomar as posições que o general Leclerc havia ocupado em 1801, durante a Guerra das Laranjas, escalonando-se até à fronteira com Portugal, e ocupando Valladolid, Toro, Zamora, Salamanca e Cidade Rodrigo, fazendo supor que a entrada em Portugal se faria por Almeida, para seguir o curso do Mondego até Lisboa.
Durante a marcha para estas posições, o exército francês foi fustigado por intempéries, enfrentou a animosidade das autoridades espanholas, que nunca tinham os géneros preparados em tempo oportuno, e a hostilidade dos espanhóis que fomentavam a deserção e que chegavam mesmo a assassinar soldados franceses. Quando se dirigia de Valladolid para Salamanca, numa altura em que as tropas estavam já muito depauperadas e a necessitar de um descanso retemperador, Junot recebeu instruções que ordenavam a progressão imediata para a capital de Portugal.
O imperador não teria indicado o caminho a seguir mas proibia que, sob o pretexto das subsistências, a marcha fosse retardada num único dia. “Vinte mil homens sobrevivem em todo o lado, mesmo no deserto. Assim que o exército entrar em Portugal deve ser alimentado, vestido e dar-se-lhe o soldo a partir dos impostos sobre as populações. É preciso que a partir da entrada em Portugal eu não tenha que enviar mais dinheiro” (Correspondência de Napoleão, tomo XVI, pág. 165).
“(...) O general Junot decidira tomar o caminho de Abrantes porque era o mais curto. Ganhava, assim, várias vantagens como evitar a praça de Almeida que provavelmente não teria aberto as suas portas e revitalizar-se em munições de guerra e de boca na cidade de Alcântara sobre o Tejo, onde se reunira a divisão espanhola do general Caraffa. (...).
Por outro lado, a grande estrada de Baiona a Lisboa, a qual seguem ordinariamente as viaturas, passa por Madrid, atravessa o Tejo na ponte de Almaraz na Estremadura espanhola, entra em Portugal pelo Alentejo e atravessa segunda vez o rio diante de Lisboa, onde ele tem três léguas de largura. A providência militar não permitia aos franceses seguirem uma rota no termo da qual, após terem vencido obstáculos de mais de um género, faltaria ainda forçar a passagem de um rio enorme ou, antes, de um braço de mar, antes de chegarem ao termo da expedição” (general Foy, ” História da Guerra na Península, sob Napoleão”, Paris, 1827).
Por estas razões, a entrada do exército de Napoleão em Portugal irá fazer-se pelo vale do Tejo, atravessando a província da Beira Baixa, acompanhado de tropas espanholas. O facto de o general Caraffa o aguardar em Alcântara pode levar a pensar que a decisão da escolha do eixo da invasão teria sido decidida em Paris conluiado entre Napoleão e Goday e comunicado a Junot.
Até Salamanca tudo decorreu satisfatoriamente mas dali para Alcântara a marcha começou a tornar-se penosa, com os homens no limite de resistência e famintos, com o calçado completamente deteriorado, ao mesmo tempo que as tempestades de neve e de chuva, quase contínuas, os impediam de manter o fardamento seco.
Uma observação do general Thiébault sugere-nos que desde Baiona se sabia que o exército francês se destinava a Lisboa e não a estacionar em Espanha: “... enquanto este exército aliado atravessava a Espanha para ir combater o seu inimigo natural, agentes espanhóis fomentavam ao longo do caminho a deserção em vários corpos estrangeiros...”. Junot apenas teria sido surpreendido pela ordem de marcha imediata, que cumpriu sem hesitações, com marchas forçadas da ordem dos 40 a 50 quilómetros diários, e teria dito na circunstância “nunca se deve deixar ao inimigo o factor tempo, quando o podemos tomar para nós”.
Em Alcântara era já visível a deterioração disciplinar e a completa desorganização do exército francês bem como a quebra de efectivos e o fraco moral das tropas. A operacionalidade do exército estava também diminuída pela falta de munições, de cavalos para a cavalaria e de muares para a artilharia, sendo esta já rebocada por bois. A chuva contínua molhava a pólvora e deteriorava as munições, cometendo então os franceses um verdadeiro crime cultural ao lançar mão dos arquivos do Convento dos Cavaleiros de Alcântara para fazer cartuchos com os documentos e livros (general Thiébault)
Apesar da situação crítica em que se encontrava, Junot não deixou de fazer, em 17 de Novembro de 1807, uma proclamação em que dizia que vinha a Portugal como amigo e protector e que o seu exército tão bem disciplinado, como valoroso, iria ter, por sua honra, um bom comportamento, ao mesmo tempo que fazia severas ameaças.
A proclamação de Junot era obviamente cínica e mentirosa. Quando, a 24 de Novembro se teve conhecimento desta proclamação em Lisboa, recebera-se nesse mesmo dia o número do “Moniteur” francês, no qual Napoleão declarava que a Casa de Bragança tinha deixado de reinar em Portugal. Napoleão pensava que Junot estaria já em Lisboa e adiantou-se a publicar esta notícia, que surgiu aos portugueses desfasada da proclamação de Junot.
Era, pois, a extinção da monarquia portuguesa a verdadeira intenção do imperador francês e as palavras que foram proclamadas por Junot eram insidiosas e enganadoras.

Quanto a forças organizadas, Portugal dispunha, na Beira Baixa, de um regimento de linha em Penamacor, dois regimentos de milícias – um em Idanha-a-Nova, outro, em Castelo Branco e um terceiro na Covilhã, já fora do eixo da invasão, além de uma praça em Monsanto, todos muito desfalcados e sem instrução ou capacidade de combate. A invasão vinha surpreender o exército português em plena fase de reorganização, iniciada em 1806 pelo secretário de estado, António de Araújo Correia.
Este incipiente exército pouco mais poderia fazer com êxito sobre as forças de Junot do que uma acção de retardamento. Mesmo que o tentasse pode dizer-se que não houve tempo de esboçar qualquer defesa e, poucos dias depois, o Príncipe Real, futuro D. João VI embarcou para o Brasil pedindo que as forças francesas não fossem hostilizadas. O factor surpresa fora, de facto, explorado com êxito por Junot.
A marcha do exército napoleónico pela Beira Baixa fez-se, pois, exclusivamente contra os elementos naturais – clima e topografia. A falta de vias de comunicação, de pontes sobre os rios e a pobreza da região eram outros factores que causavam problemas aos franceses. Acresce que todos os rios afluentes do Tejo desta área raiana apresentavam-se perpendicularmente à linha de marcha, o que dificultava extremamente o avanço das tropas: cada ribeira era um ameaçador precipício difícil de ultrapassar.
Em Alcântara, o dispositivo francês adaptou-se à nova situação. A 2ª e a 3ª divisões e a cavalaria constituíram a coluna norte e atravessaram o Erges em Segura, tomando o caminho de Idanha-a-Nova, Escalos e Castelo Branco. O quartel-general, a 1ª divisão e as tropas espanholas, constituindo a coluna sul, seguiram por Rosmaninhal e Monforte da Beira, em direcção a Castelo Branco.
Ambas colunas tiveram que atravessar a vau o rio Ponsul, na margem direita do qual, se tivesse sido organizada uma resistência, o exército invasor teria encontrado as primeiras dificuldades militares. O Ponsul constituía uma linha muito extensa e a sua defesa requeria muitos meios mas como a região foi invadida por um efectivo, que teria de passar obrigatoriamente por certos locais, bastaria uma defesa criteriosa em certos pontos no caminho Segura/Monforte e Idanha-a-Nova/Castelo Branco. Após uma acção de desgaste, as forças portuguesas poderiam ocupar as Talhadas (região de Vila Velha de Ródão), a que nos referiremos, e impedir, até, a passagem de Junot. De pouco valeria, porém, esse esforço, uma vez que Napoleão tinha, em França, um novo corpo de exército para reforçar o invasor, se tal fosse necessário.

As forças de Junot eram precedidas de uma guarda avançada que partiu para Segura em 19 de Novembro e, em 20, as divisões puseram-se em marcha sem qualquer distribuição de víveres. É curioso atentar no dispositivo adoptado por Junot ao fazer avançar as divisões sobre Castelo Branco por dois itinerários distintos, procurando desta maneira evitar a confusão numa região com más vias de comunicação e, em terras pobres, distribuir os homens na esperança de mais facilmente obterem alojamento e alimentação.
O itinerário da 2ª divisão era mais longo, mais difícil e mais cortado por torrentes de riachos que dificultavam a progressão; todavia, qualquer deles revelou ausência de recursos, em carne e em pão. A artilharia foi-se sempre atrasando por falta de solípedes, dificuldade que a cavalaria também sentiu. Quanto à cavalaria era costume colocá-la à retaguarda das colunas porque se entendia que devia marchar protegida pela infantaria, mas nas circunstâncias da Beira Baixa, se houvesse um prévio conhecimento da área, julgamos que não teria sido dado tão mau uso a esta arma. Marchando na vanguarda teria proporcionado maior mobilidade para as outras armas e teria efectuado requisições de recurso em tempo oportuno.
A guarda avançada chegou a Castelo Branco no dia 20, à noite. Um comissário entrou na cidade trazendo ordens para aprontar sem demora 5 000 rações de carne, pão e vinho para outros tantos franceses e espanhóis que estavam a entrar na cidade. Com eles vinha o general Laborde, sendo de supor que se tratavam de elementos da 1ª divisão.
A dificuldade de comunicações conferiu a esta invasão uma enorme surpresa. Embora as autoridades fronteiriças ouvissem rumores da marcha francesa em Espanha e se apercebessem vagamente da possibilidade da sua entrada em Portugal, é um facto que Castelo Branco apenas tomou contacto com a realidade com o invasor já à porta. Num ofício de 24 de Novembro de 1807, Florêncio José Correia de Melo, Governador das Armas da Beira Alta, refere que só tomou conhecimento da invasão nesse dia e que não teve tempo de tomar quaisquer disposições.
Também as fontes francesas apontam para essa ignorância:
“(...) Os franceses não eram esperados em Portugal: nada estava preparado para os receber fosse como amigos, fosse como inimigos. Tinha-se sabido na Beira que eles se aproximavam da fronteira. Como os magistrados não receberam ordens nem avisos sobre a conduta a ter com eles, pensara-se que o exército francês passaria o Tejo em Espanha para se dirigir a Gibraltar. Esta opinião ganhara crédito quando se viu que as primeiras colunas se deslocavam sobre Alcântara. (...) Entram sem distribuição de víveres. Castelo Branco, a única cidade da rota que poderia ter fornecido pão, carne e vinho foi apanhada desprevenida e como que aturdida pela irrupção de tropas estrangeiras. (...) Apesar dos exemplos de severidade dados pelo general em chefe, a pilhagem impedia os habitantes de aplicarem na subsistência do exército os fracos recursos de que teriam podido dispor em circunstâncias normais. (...)” (general Foy, obra já citada).
Castelo Branco, pela sua posição geográfica era a chave da Beira Baixa. Num relatório posterior à invasão, Vincent refere-se a esta cidade nos seguintes termos:”... é uma posição digna de ser fortificada. É preciso obrigatoriamente passar por ali para ultrapassar o Zêzere. A região é rica, a cidade está próxima do Tejo, que se atinge por uma estrada transversal e pode constituir uma defesa contra um agressor vindo do Alentejo, pela margem esquerda do rio.”. A região não era rica nem tinha recursos suficientes para retemperar as depauperadas forças de Junot, que ali chegaram, pelo que houve que recorrer às outras povoações do concelho para as alimentar.
Segundo o meticuloso relatório já referido as unidades foram-se desfazendo e chegaram a Castelo Branco completamente exaustas, numa grande confusão, demorando o exército franco-espanhol mais de um mês a escoar, embora a maior parte dos franceses chegasse com Laborde nos dias 20 e 21.
“(...) Avaliariamos mal a dificuldade de invadir Portugal pelo aspecto que apresenta a configuração deste país nas cartas geográficas (...) Os detalhes do terreno eram desconhecidos do exército porque as cartas geográficas são tão inexactas que nem dão os nomes dos cursos de água a atravessar. Os próprios portugueses conhecem melhor a Índia e o Brasil que os vales de Trás-os-Montes e da Beira (...)” (general Foy, obra citada).
O próprio Napoleão estava ciente de que o Portugal geográfico era desconhecido para os franceses. Em carta escrita em Fontainebleau em Outubro de 1807, provavelmente a pensar nas operações futuras, dá conta a Junot das ordens relativas às tropas a partir de Baiona e pede-lhe que lhe descreva em pormenor todas as províncias por onde passa, as estradas, a natureza do terreno e que lhe envie desenhos. Pretende ainda saber as distâncias entre as aldeias, características dos sítios, e os recursos disponíveis. ” (Correspondência de Napoleão, tomo XVI, Paris, 1864, pág. 115-117).
Já Junot estava em Lisboa, onde chegou no dia 30 de Novembro e ainda havia tropas invasoras a afluir a Castelo Branco, onde os franceses foram bem acolhidos, o que de deve, em parte, à aparente boa vontade do bispo D. Vicente Ferrer da Rocha que inclusivamente recebeu Junot e outros oficiais no Paço Episcopal.
No dia 3 de Dezembro chegou à cidade um governador francês que leu uma proclamação na qual, entre as habituais palavras de amizade, se revela a dificuldade de escoamento de toda a coluna, ao sugerir ser sua intenção assegurar a linha de comunicação por Castelo Branco, considerando que ainda era necessária: “... Magistrados de Castelo Branco (...) eu visitarei os caminhos e vós me ajudareis a fazer reparar os maus passos, a fim de os comboios não encontrarem demora e a sua marcha assim como a das nossas tropas se acelere....
Este governador só no dia 9 de Janeiro deu por finda as sua missão e seguiu para Lisboa.
Após uma curta estadia, embora muito reconfortante, porque foi apenas em Castelo Branco que as tropas se puderam alimentar e reorganizar, as colunas, já muito misturadas, partiram imediatamente, apenas retardadas pela chuva que não cessava de cair e sempre procedidas pela guarda avançada.
Uma vez mais, para chegar a Abrantes as tropas dividiram-se por dois itinerários. Uma divisão seguiu por Sarzedas, pelas Talhadas na Portela do Montegordo, passando depois por Sobreira Formosa e as outras pela Portela da Milheiriça, próximo de Perdigão. Fontes francesas descrevem a odisseia que foi a travessia do rio Ocreza, hoje servida por uma ponte mas, na época, difícil de realizar por um exército recorrendo apenas a uma pequena barca, sob uma chuva inclemente.

Thiébault ficou impressionado com a imponência das Talhadas, a dificuldade da sua transposição e a facilidade com que poderia ser defendida pelos portugueses, o que faz supor que, de facto, em França não havia um perfeito conhecimento do terreno que era preciso atravessar por este eixo de invasão.
“(...) O exército encontrou em Abrantes o termo dos seus sofrimentos. (...) Se o príncipe regente se tivesse querido servir da força das armas para recusar aos estrangeiros a entrada no reino, nada o impedia de opor aos franceses mais de dez mil homens reunidos antecipadamente nos arredores da sua capital. As tropas de linha e os milicianos teriam ocupado Abrantes, ou pelo menos, ter-se-iam visto a guarnecer as trincheiras que existem na margem direita do Zêzere, diante de Punhete (Constança). Pelo contrário, o aspecto moral da região era calmo e pacífico. A partir de então, o sucesso da expedição não foi mais problema.
Pensamos que só a ilusão de uma marcha curta ditaram a entrada de Junot pela Beira Baixa, sem o mínimo conhecimento da região e sem cartas militares orientadoras. Se o país se dispusesse a defender o seu território tê-lo-ia feito com facilidade em vários locais. A invasão, tal como se processou, facilitou uma solução política de emergência, dando tempo para a partida do Príncipe D. João para o Brasil. Junot chegou tarde a Lisboa e ficou impossibilitado de tornar refém o poder político, que transferiria para alguém nomeado por Napoleão, tal como fizera em Espanha, em cujo torno colocou o seu irmão José Bonaparte.
A saída do Príncipe Real para o Brasil tem sido muito discutida mas afigura-se-nos ter sido uma medida muito sensata e eficaz, contrariamente a outras opiniões que a consideram uma fuga e o abandono dos portugueses ao invasor. Junot, ao avistar ao longe as velas da esquadra portuguesa que levava a família real para terras de Vera Cruz, ficou profundamente desiludido e desesperado. Um contratempo, porém, não permitiu que os navios deixassem o Tejo mais cedo: na noite de 28, a mudança de direcção do vento possibilitou apenas a saída da barra e só no dia 29 a esquadra pode zarpar para o seu destino. Foi por pouco que Junot não conseguiu cumprir o seu objectivo principal.
O que Junot ganhou em surpresa perdeu em lentidão – e a marcha era essencialmente uma corrida de velocidade até Lisboa, corrida que as dificuldades encontradas na Beira Baixa lhe fizeram perder.

Abrantes e as Invasões Francesas

Antes de entrar no âmago da primeira invasão em Abrantes parece-nos oportuno tecer previamente algumas considerações sobre a posição estratégica de Abrantes, que explicam muito do que sucedeu nesta cidade.

Situada no centro do país, numa área geográfica triangular conhecida na História Militar como “Área de Expectativa Estratégica”, com os vértices assentes em Abrantes, Tomar e Santarém e, debruçada sobre o Tejo, cujo vale constitui um dos eixos naturais de entrada em Portugal para o inimigo vindo de Espanha, Abrantes teve ao longo da História um excepcional valor estratégico. Deixemos as épocas mais recuadas e detenhamo-nos tão só em tempos mais modernos, já do séc. XVIII, quando Abrantes desempenhou um papel activo, não só de expectativa estratégica, mas em eventos histórico-militares de estratégica directa, que importa relembrar por constituírem ensinamentos para compreender a lª. Invasão Francesa.
Em 1704, ocorreu em Portugal a Guerra da Sucessão de Espanha, altura em que o país foi invadido por um exército franco-espanhol, que pretendia chegar a Lisboa pelo vale do Tejo. As tropas portuguesas comandadas por D. Pedro II e o holandês Fagel avançaram para esta cidade e desenharam uma estratégia coordenada com o Governador das Beiras, o famoso Marquês das Minas, que foi determinante para que os invasores ao chegarem a Vila Velha de Ródão, decidissem retirar pelo Alentejo, atravessando o rio Tejo. Haviam entrado por Segura, passaram por Castelo Branco e Vila Velha de Ródão, num trajecto que irá ser retomado um século depois por Junot. Não menos famosa foi também a presença em Abrantes, em 1762, das tropas portuguesas do Conde de Lippe que, à frente de 7 000 homens, aqui estabeleceu o seu quartel-general. Manobrando entre Abrantes e Mação daqui fez abortar nova invasão franco-espanhola, inserida na chamada Guerra Fantástica ou Guerra dos Sete Anos. O inimigo vinha também de Castelo Branco e Vila Velha de Ródão mas foi obrigado a retorceder por Segura.
As duas invasões claudicaram em Vila Velha de Ródão, nas Talhadas, mas a manobra estratégica de defesa foi concebida em Abrantes e teve o seu fulcro nesta cidade, que o inimigo pretendia atingir.
Em 19 de Novembro de 1807, foi também por Segura que Junot, à frente de um numeroso exército franco-espanhol entrou em Portugal e, tal como nas duas invasões precedentes, passou por Castelo Branco e Vila Velha de Ródão para cair sobre Abrantes numa manobra idêntica às do século precedente. Manobra que se deve considerar imprudente, em face das lições anteriores mas, desta vez, a passagem pela cidade de Abrantes tornou-se possível pelo facto de Portugal ter decidido não hostilizar o invasor. Ainda assim, são sobejamente conhecidas as condições degradantes em que o exército logrou chegar a Abrantes.
Nas três campanhas descritas tornou-se evidente que as Talhadas, na região de Vila Velha de Ródão, formidável maciço que se desenvolve de Nisa a Moradal numa distancia de cerca de 27 Km, perpendicularmente à direcção da marcha e com apenas 4 difíceis passagens, desgasta o inimigo até ao limite. Se lograr chegar a Abrantes, como no caso desta invasão da Guerra Peninsular, chega num estado de depauperamento extremo pelo que a cidade estava condenada a ser inevitavelmente objecto de saques, rapinas e violências. Foi aqui que o invasor teve oportunidade de se fortalecer e reorganizar mas, ao retomar a marcha para Lisboa, o objectivo de todas estas invasões, as dificuldades começaram de novo com a travessia do rio Zêzere.
A constatação de que evitando as Talhadas e a circunstância de o rio, a partir de Abrantes, poder facilitar a chegada dos invasores a Lisboa, está na origem de uma famosa estratégia conhecida por “Dupla travessia do Tejo”, defendida por tratadistas militares coevos. Consistia em atravessar o rio Tejo em Vila Velha de Ródão, no local onde o invasor o fez na guerra da Sucessão de Espanha), pois a partir daí o Tejo torna-se muito encaixado, progredir pelo terreno mais favorável do Alentejo paralelamente ao rio e voltar à margem norte, em Abrantes. Curiosamente, nas três invasões descritas, os chefes militares inimigos ignoraram esta manobra estratégica e executaram ou tentaram executar uma acção frontal sobre as Talhadas com todos os inconvenientes que daí podiam resultar. O general Thiébault, chefe do Estado-maior de Junot, mesmo depois de ter vivido as dificuldades por que passou, nunca foi adepto desta manobra militar e afirmou sempre que faria tudo da mesma forma. Ao planearem a terceira invasão, os franceses evitaram passar pelas dificuldades da primeira e optaram por seguir o vale do Mondego, como o deveria ter feito Junot.

Os Franceses em Abrantes

A guarda avançada, saída de Castelo Branco, atingiu Abrantes no dia 23 de Novembro e Junot chegou na manhã do dia 24. As várias unidades, completamente desfeitas, foram entrando na cidade entre 24 e 2 de Dezembro. Para efeitos da propaganda, Napoleão fez crer em Paris que a chegada a Abrantes fora um glorioso feito de armas e atribui a Junot o título de “Duque de Abrantes”.
As dificuldades encontradas pelos franceses na Portela das Talhadas (1ª. divisão) e na Portela da Milhariça (2ª. divisão), esta mais próximo de Vila Velha de Ródão, revestiram-se de grande importância estratégica. Não se tivesse Junot embrenhado nas montanhas que circundam esta vila e se prolongam até ao Mourada l e poderia ter chegado a tempo de prender o Príncipe Real D. João porque de Abrantes até Lisboa a marcha tornou-se menos penosa e mais rápida pois muito material, os estropiados e os doentes seguiram pelo rio Tejo, em barcos. Tudo indica que os franceses não contaram com as dificuldades que iam encontrar, falta de informação, que é estranha pois Junot fora embaixador da França em Portugal, em 1805. Deste equívoco resultou que a I Invasão e toda a Guerra Peninsular começava, para Napoleão, com uma grande derrota estratégica, de enormes repercussões futuras.
Transpostas as Talhadas, que os franceses atravessaram com extrema dificuldade e sofrimento, e onde o exército esteve prestes a desfazer-se, o invasor atingiu Abrantes que foi a sua salvação. Abrantes, segundo o general Thiébault, era uma rica cidade que oferecia recursos que salvaram o exército “a chuva continuava, mas não era tão fria e envolvidos pelo perfume das laranjeiras, o ar tinha uma suavidade que revigorou os soldados e causou neles uma impressão verdadeiramente feliz. Ainda havia dificuldades a vencer, mas agora atingiriam Lisboa por caminhos já conhecidos”. (general Thiébault).
Pela primeira vez, depois de Salamanca, foi possível distribuir rações completas aos soldados e mesmo avançar pão para o dia seguinte. Durante os poucos dias que os franceses permaneceram em Abrantes, estavam continuadamente a chegar grupos dos que tinham ficado para trás, o que permitiu dar alguma organização ao exército. Os franceses estavam descalços e Junot providenciou logo para que se confeccionassem rapidamente 10 000 pares de sapatos, que se fizeram com brevidade e, além disso, “requisitaram” mais 4 000 pares de sapatos a todos os habitantes masculinos de Abrantes que aparecessem calçados, não se coibindo de inspeccionar casa por casa (general Thiébault).
O estado do armamento era deplorável: nem uma espingarda estava em estado de fazer fogo e os cartuchos estavam também molhados e incapazes porque a água tinha entrado nos cofres de munições, quando da passagem pelas ribeiras. Recorde-se que o armamento francês não obstante todos os avanços técnicos da Revolução Industrial eram ainda as espingardas pederneiras dos séculos precedentes.
Só quando Junot entrou em Abrantes, a 24 de Novembro é que as autoridades esboçaram sem êxito, e sem grande vontade o levantamento da população. Com o àvontade de quem não teria já resistência, ele próprio anunciou ao primeiro ministro de Portugal que estaria em Lisboa em 4 dias. E ameaçava:”(...) Os meus soldados estão desolados por não terem feito tiros. Não os forçais a isso (...)”(general Foy). Pura bravata de quem não tinha condições militares para cumprir o que ameaçava fazer!.
Um corpo de tropas portuguesas estava em Tancos mas Junot não sabia as ordens que recebera. Enviou-lhes um parlamentar com uma carta explicando que vinha em salvação de Portugal. Essa tropa abandonou Tomar e dirigiu-se para a costa para defender o país contra a entrada dos ingleses! Que ingenuidade e ignorância! Ou talvez não se tivermos em atenção o papel de certas forças da Igreja, do Exército e da Maçonaria no apoio aos franceses, em nome dos ideais saídos da Revolução Francesa.
Junot não queria perder tempo em Abrantes e ordenou imediatamente que um regimento fosse para Punhete (Constança) para proteger a construção de uma ponte sobre o Zêzere. Em 1801, tinha existido na foz deste rio uma ponte de barcas e os franceses aproveitaram o material existente para apressar a sua construção.
E foi em Abrantes que Junot se desembaraçou das tropas espanholas.
As tropas do general espanhol Caraffa foram enviadas de Abrantes para Tomar para se dirigirem ao Porto, obtendo assim Junot a dupla vantagem de se desembaraçar dos estrangeiros espanhóis, quando se aproximava da capital, e assegurar a ocupação de Entre Douro e Minho que, segundo informações que recebera, ainda não se tinha realizado.
A marcha da guarda avançada que precedia Junot tornou-se difícil nos campos da Golegã que estavam inundados, e só uma parte da lª. divisão seguiu o seu caminho até à Piedade, indo depois para Pernes. As restantes forças tomaram a estrada de Torres Novas e Pernes, evitando as inundações do Alviela e do Almonda. (general Foy). Ao meio dia de 28, entrou em Santarém a guarda avançada, onde apenas fez um grande alto, recebeu víveres e continuou a marcha para Cartaxo onde bicavou, e foi nesta povoação que Junot às 2 da madrugada de 29 recebeu a notícia, que o deixou furioso, de que a família real estava a embarcar para o Brasil. Perdera a corrida contra o tempo e a possibilidade de aprisionar a família real. A inclemência do tempo, a aspereza dos caminhos e as Talhadas haviam cumprido uma função estratégica de extrema importância e grandes consequências futuras.

Abrantes - posição operacional

As primeiras medidas estratégicas tomadas por Junot passaram por garantir linhas de comunicação com Espanha uma vez que a esquadra inglesa, postada na embocadura do Tejo, impedia o acesso à capital por mar. Inicialmente pretendeu manter a linha de comunicações ao longo do rio Tejo, por Abrantes Santarém, Segura e Alcântara, num trajecto inverso ao da invasão mas, pensando talvez nas dificuldades por que passara, mudou-a para a linha do Mondego, por Leiria, Coimbra e Almeida, que pôs a funcionar através de “postos de etapas”, colocando em cada etapa um pequeno destacamento. Duas colunas móveis, uma entre Lisboa e Coimbra e outra entre Coimbra e Almeida estabeleciam as ligações, dispondo cada coluna de um oficial de engenharia, que inspeccionava os postos, havendo um inspector-geral de toda a linha. O comando de Almeida foi, mais tarde, entregue ao general Loison, o célebre “Maneta”, que havia de se tornar tristemente célebre pelas suas repressões sanguinárias.
Organizou ainda uma linha alternativa para Madrid, pela margem esquerda do rio Tejo até Elvas, que passaria igualmente por Abrantes. Para além disso ocupou os pontos estratégicos do país e, naturalmente, postou em Abrantes uma guarnição. Quando, posteriormente, em Julho de 1808, se começou a generalizar o levantamento do povo português e se aproximava o auxílio inglês, os portugueses começaram a tornar-se mais atrevidos. Da Beira Baixa, e provavelmente de outros pontos, quando se avizinhavam as batalhas finais decisivas (Roliça e Vimeiro), partiam forças – umas irregulares de milícias e outras regulares – para fustigar os franceses em Abrantes e neutralizar esta importante posição estratégica, então em mãos francesas.
Um documento anónimo, conhecido pelos investigadores albicastrenses e que descreve com grande pormenor tudo o que se passou em Castelo Branco, dá conta dessas incursões, idas das Beiras. Adiante se lerá no documento como se processou a incursão feita a Abrantes pelo padre Manuel Domingos Crespo, com uma companhia de milícias, numa descrição bem elucidativa.
Para acorrer às batalhas decisivas, que se aproximavam, o mesmo documento dá também conta da passagem por Castelo Branco de várias unidades regulares vindas de Almeida com destino a Abrantes., que estaria já desocupada pois Junot reagrupou na região de Torres Vedras todas as suas forças para se opor aos ingleses.
No dia 10 chegou àquela cidade beirã um contingente de 1200 homens de tropa portuguesa e nos dias seguintes mais 6000 a 8000 homens, entre outros pequenos destacamentos que passaram entre os dias 13 e 23, sempre com destino a Abrantes. Depois das batalhas de Roliça e Vimeiro, respectivamente a 17 e 21 de Agosto, regista-se a sua passagem por Castelo Branco de regresso às suas unidades de origem.
Lembremos, ainda, as divergências que teve o comandante em chefe do paupérrimo exército português, Bernardim Freire de Andrade, nomeado pela Junta Provisional do Porto, com o general Wellesley no momento em que os ingleses desembarcaram. Wellesley queria a todo custo atingir Lisboa pelo litoral, sempre protegido pela esquadra inglesa, mesmo enfrentando os franceses de Junot, como viria a acontecer em Roliça e Vimeiro.
Por seu lado, o general português entendia que deviam ser cortadas primeiro, ou ameaçadas as linhas francesas de comunicação com o interior e o norte, nomeadamente no ponto crucial de Abrantes, tendo obtido do general inglês a promessa de que um corpo de soldados e milicianos se dirigiria, por Viseu, a Castelo Branco e Abrantes, enquanto algumas tropas de Bernardim Freire o acompanhariam na marcha até Lisboa.
Não é, também, despiciendo recordar que já com os ingleses prestes a desembarcar ainda Loison, “o Maneta”, andava a fazer uma sanguinária repressão no Alentejo. Chamado à pressa para se juntar às tropas francesas concentradas em Lisboa, foi a Abrantes que se dirigiu para, depois, partir para a zona dos combates. Não chegou a tempo de participar na batalha de Roliça mas esteve presente na de Vimeiro, que foi comandada pelo próprio Junot.

Abrantes - nó logístico

Terminada a I Invasão Francesa, Abrantes transformou-se num importante centro logístico para a Beira e para outras regiões do centro do país, tendo como principal objectivo Almeida e Elvas, que eram as duas grandes entradas em território português. Os reabastecimentos vinham de Lisboa pelo rio Tejo e chegavam à cidade de Abrantes, onde se situava o depósito principal. Dali seguiam pelo rio até Vila Velha de Ródão, que se teria constituído como uma antena logística avançada de Abrantes, entre 1808 e 1812, ou seja, durante praticamente toda a Guerra Peninsular. Para Elvas, a corrente de reabastecimento podia também ser feita por terra, passando por Nisa e Castelo de Vide. Para Almeida e de um modo geral para as Beiras há fortes indícios documentais de que haveria uma antena mais avançada, em Castelo Branco.
Tudo isto se deduz do precioso trabalho do albicastrense José Teodoro Prata, “O Concelho de S. Vicente na Guerra Peninsular”, trabalho limitado a este pequeno concelho beirão e que integra elementos colhidos em apontamentos designados de “pessoas que fizeram transportes para o Exército (1809-1812)”. Trabalho limitado, é certo, a S. Vicente da Beira mas muito revelador do que seria o sistema logístico da época e ainda de que a Abrantes chegavam apoios logísticos de Lisboa, idos pelo rio mas também do Leste, de zonas tão longínquas como o era a região de Castelo Branco, em especial apoios em meios de transporte.
Nos finais de 1808, foi colocado em Castelo Banco um comissário inglês de todos os transportes que coordenava os “carreiros”, os ganhões que realizavam os transportes para as tropas aliadas com os carros de bois, que quase nunca eram ressarcidos dos prejuízos que isso lhes causava, pelo que iam desertando ou abandonando a sua indispensável actividade para a tropa.
Atentemos nalgumas expressões extraídas deste livro de S. Vicente da Beira, que são bem elucidativas da importância de Abrantes e que nos permitem estabelecer como fluía a corrente logística no vale do rio Tejo, expressões todas elas constantes de documentos da época, relativos apenas às gentes de S. Vicente da Beira:

“ (…) andaram a acarretar lenha em Abrantes ”;
“ (…) receberam quatro duros para transportar pólvora e balas de Abrantes para Cidade Rodrigo ”;
“ (…) em 30 de Abril de 1812 partiram do Louriçal (localidade perto de S. Vicente da Beira) para Abrantes 5 carros de bois e por lá andaram em comissão, prestando um serviço durante 30 dias “;
“ (…) foram para Vila Velha de Ródão carregar farinha para esta cidade (Castelo Branco), sempre juntos “;
“ (…) os ganhões deixaram os carros quebrados em Abrantes “;
“ (…) a viagem de ida e volta (S. Vicente – Abrantes - S. Vicente) demorava 7 dias “;
“ (…) em Castelo Banco havia um armazém de mantimentos, designado na documentação por ”assento e feitoria” mas o grande centro militar desta vasta área percorrida pelos carreiros do concelho de Abrantes, de Elvas a Cidade Rodrigo (frente a Almeida), era Abrantes.
De Abrantes vinham os barcos carregados de mantimentos, Tejo acima, como se adivinhava pelo elevado número de carradas que se transportava de Vila Velha de Ródão com destino à linha de Castelo Branco, Alpedrinha, Fundão, Covilhã, Guarda, Sabugal e Cidade Rodrigo “;
“ (…) mandavam carregar farinha de Abrantes para Castelo Branco “.

Neste estudo há ainda referências repetidas, isoladas e variadas, relativas a transportes de e para Abrantes que reforçam claramente a ideia já expendida da importância logística de Abrantes.
Os trajectos logísticos mais usuais a partir desta cidade eram:
  • Abrantes-Niza;
  • Abrantes-Castelo Branco (muito frequente);
  • Abrantes-Fundão (frequente);
  • Abrantes-Elvas (frequente);
  • Abrantes-Pego;
  • Abrantes-Castelo de Vide (frequente);
  • Abrantes-Covilhâ;
  • Castelo Branco-Abrantes (muito frequente);
  • Vila Velha de Ródão-Castelo Branco.

Se, de um estudo tão limitado, ressalta com tanta força e clareza o papel logístico de Abrantes durante a Guerra Peninsular, podemos imaginar os ensinamentos que poderíamos colher se em todos os concelhos a leste de Abrantes se fizessem estudos idênticos.


De uma análise específica que fizemos sobre a manobra logística de Wellington durante a III Invasão Francesa, e mesmo depois quando a guerra foi levada a Espanha, que é o período que interessa a Abrantes uma vez que a II Invasão Francesa não passou de uma incursão pelo Norte, até ao Porto, concluímos, por outra via, da importância da cidade como nó logístico.
De novo Wellington precisava de abastecer as linhas conducentes às duas entradas (Almeida e Elvas). Os abastecimentos chegavam a Lisboa, Figueira da Foz e ao Porto, desde Inglaterra, e seguiam até Abrantes pelo Tejo, pelo vale do Mondego até Penacova e até Lamego pelo Douro. As chaves da concepção logística do generalíssimo passavam, pois, por Abrantes, Penacova e Lamego, que eram as cidades onde os ingleses montaram os depósitos principais. Dali seguiam os abastecimentos, tal como já descrevemos, em comboios de centenas de carros de bois e a dorso de milhares de muares para depósitos secundários, estabelecidos em Leiria, Tomar, Condeixa, Coimbra Viseu, Celorico e Almeida. Já no final da terceira campanha, Wellington, prevendo uma nova investida francesa, estabeleceu, em finais de Março de 1811, depósitos em Lamego e Raiva servidos, respectivamente, pelo Douro e pelo Mondego e ainda em Celorico, Guarda, Penamacor e Castelo Branco, apoiados no rio Tejo, até Abrantes.
Não mais será necessário para realçar o papel logístico dos rios na defesa do país e de Abrantes, situada numa excepcional posição estratégica no rio Tejo. Esta importância manteve-se ao longo de toda a Guerra Peninsular, sendo as frentes servidas por comboios de ganhões, numa manobra logística que se desenhou logo que terminou a I Invasão Francesa, como se disse.


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